O individuo e a liberdade |
Nascido em Londres, John Stuart
Mill é filho de James Mill filósofo e historiador da Índia, considerado, ao
lado de Jeremy Bentham, um dos fundadores do utilitarismo inglês. Desde a sua
mais tenra infância, Mill se viu às voltas com os projetos educacionais
de seu pai, determinado a fazer do jovem Mill o porta-voz da escola
utilitarista para as novas gerações. Com o auxílio de seu amigo e vizinho
Jeremy Bentham, James Mill colocou em prática um rígido plano pedagógico
destinado a garantir o sucesso intelectual de seu filho. Assim é que, aos três
anos, o pequeno Mill iniciou-se na leitura do grego. Aos oito, aprendeu latim e
aos doze anos já havia estudado quase todas as obras do pensamento clássico.
Nos anos subseqüentes, seus estudos foram orientados para os campos da
história, psicologia, filosofia e lógica.
Stuart Mill nunca frequentou os
bancos de uma universidade. Apesar disso, sua maturidade intelectual era
patente já aos quinze anos de idade, quando se encarregou de revisar algumas
obras jurídicas de Jeremy Bentham. Aos dezessete anos publicou seu primeiro
artigo. Nesta mesma época, começou a trabalhar sob as ordens de seu pai nos
escritórios da Companhia das Índias Orientais. Conquistava assim uma colocação
capaz de lhe assegurar estabilidade financeira e o tempo necessário para suas
atividades intelectuais.
A popularidade de Mill como
escritor político e seu interesse pelas questões políticas mais prementes de
sua época levaram-no a participar mais diretamente da política. Em 1865, Stuart
Mill foi eleito como representante por Westminster para o Parlamento.
Entretanto, sua carreira política foi breve. Stuart Mill näo conseguiu se
reeleger em 1868. Derrotado, Mill retirou-se para Avignon, na França, onde
permaneceu até sua morte.
John Stuart Mill nasceu em 8 de
maio de 1806 e faleceu a 16 de maio de 1873. Ao longo dos 67 anos de sua vida, Stuart
Mill foi testemunha de mudanças fantásticas tanto na sociedade como na política
e na economia de seu país, a Inglaterra. As raízes destas transformações datam
da segunda metade do século XVIII, com o advento da Revolução Industrial.
Falando desta revolução, um conhecido historiador de nossos dias nos dá
uma boa indicação de sua magnitude para a história da humanidade. Para Eric
Hobsbawm, "nenhuma mudança na vida humana, desde a invenção da
agricultura, da metalurgia e do surgimento das cidades no neolítico foi
tão profunda como o advento da industrialização".
Stuart Mill não viveu os primeiros
momentos desta revolução. Mas foi contemporâneo de seu apogeu, quando os
trilhos das ferrovias inglesas se estendiam por todos os continentes,
atravessando regiões onde antes nada havia passado. Foi esta a época em que se
consolidou o mais vasto império de que se tem notícia na história: o Império
Colonial Britânico, onde, dizia-se, o sol jamais se punha dentro de seus
limites. Alguns dos resultados mais óbvios destas transformações são
bem conhecidos: o surgimento da classe operária, da burguesia industrial e
financeira e a universalização de uma economia de bases monetárias. Tudo junto
concorrendo para a construção de uma nova ordem essencialmente moderna.
Tão importantes quanto estas
transformações na economia e na sociedade inglesa daquela época foram as
mudanças que se verificaram na política daquele país. Nesta dimensão, os
resultados podem ser agrupados em dois grandes blocos: em primeiro lugar temos
a constituição de um conjunto de instituições capazes de canalizar e dar voz à
oposição, criando um sistema legítimo (por isso mesmo reconhecido por todas as partes)
de contestação pública. Antes de avançar nestas considerações, é
preciso deixar claro o que queremos dizer com a expressão "sistema de
contestação pública". A existência de oposição é um fato inerente
a todo e qualquer processo político. Tomado em sentido bem amplo, é através da
política que toda sociedade enfrenta uma questão crucial: quais os critérios
que irão presidir a alocação da riqueza e dos valores socialmente produzidos.
Uma vez que esta riqueza e estes valores são finitos, a insatisfação é um
resultado previsível em qualquer decisão política. Isto significa que o
processo político sempre traz latente uma dose de competição que pode no máximo
ser abafada, mas nunca eliminada. Pois bem, a "invenção"
moderna está em criar mecanismos para absorver esta competição,
institucionalizando procedimentos capazes de dar voz à insatisfação, ao mesmo
tempo que neutralizam os componentes desagregadores presentes na atividade da
oposição, tornando-a alternativa de governo. Diga-se, Stuart Mill foi
um dos maiores defensores a dar voz, de modo que para ele, a competição e os
diferentes interesses que se chocam na sociedade é fator crucial para o
desenvolvimento.
Em segundo lugar, temos o
alargamento das bases sociais do sistema político, com a incorporação de
setores cada vez mais amplos da sociedade. Na Inglaterra do século passado,
este último processo se realizou mediante a expansão da participação eleitoral.
As grandes reformas eleitorais de 1832, 1867 e 1884 terminaram por
universalizar o direito de voto pelo menos para a população masculina, ao mesmo
tempo que aumentavam a representatividade da tradução dos resultados eleitorais
em cadeiras no Parlamento. Um dos resultados mais visíveis disso foi a
constituição de um sistema de partidos eleitorais de bases amplas e
competitivo, em condições de canalizar a participação da população no sistema
político.
As transformações que esquematizei
acima não aconteceram todas à mesma época. A incorporação de mecanismos
institucionais capazes de administrar o dissenso entre as elites politicas
precedeu por quase um século a abertura desse sistema à participação popular
. Na época em que Stuart Mill viveu, boa parte dos esforços necessários
para tornar efetivos os canais de competição politica já havia produzido os seus
frutos. Ao tempo de Stuart Mill, a questão candente que desafiava a
imaginação das elites politicas inglesas era a incorporação pacifica da massa
de trabalhadores empobrecidos pela industrialização, e que tais batiam as
portas do sistema politico. Visto em retrospectiva, a solução
encontrada para este problema assume uma aparência tradicionalista que encobre
os imensos riscos que lhe eram inerentes e que não podem ser subestimados numa
apreciação histórica. Como nos informa Eric Hobsbawm
“As possibilidades de uma revolução foram
invulgarmente grandes. [...]. Nenhum governo britânico podia confiar,
como todos os governos franceses, alemães ou americanos do século XIX, em
mobilizar as forças políticas do campo contra a cidade, em arregimentar vastas
massas camponesas e pequenos lojistas e outros pequenos burgueses contra uma
minoria - muitas vezes dispersa e localizada - de proletários. (ou
seja, mobilizar forças politicas de pessoas que não tinha relação com a
industrialização, contra pessoas do proletariado, pessoas que faziam parte da
industrialização, que no tempo ainda era uma minoria, incluídos ai empresários
e trabalhadores). A primeira potência industrial do mundo foi também
aquela em que a classe trabalhadora manual (não industrializada) era a mais
numerosa.”
É este o pano de fundo que dá
significado à trajetória da vida e da obra de John Stuart Mill, apontado como o
mais legítimo representante do movimento liberal inglês do século passado. Em
sua obra encontramos ecos de todas as fases por que passou este movimento desde
o utilitarismo radical dos primeiros anos do século até a sua fase democrática,
defensora do sufrágio universal e de reformas sociais.
Individuo e Liberdade.
A posição de Stuart Mill sobre
estas questões tem raízes na concepção utilitarista defendida por Bentham e
James Mill. Para estes dois autores, a realidade da economia de mercado
constitui-se num paradigma teórico (praticidade) para a construção de seus
modelos de sociedade e de indivíduo. Desta forma, a natureza humana parece-lhes
essencialmente pragmática, sendo o homem é um maximizador do prazer e um
minimizador do sofrimento. A sociedade é o agregado de consciências
autocentradas e independentes, cada qual buscando realizar seus desejos e
impulsos. O bem-estar pode ser calculado para qualquer homem
subtraindo-se o montante de seu sofrimento do valor bruto de seu prazer.
Prazer, dor, felicidade e ventura são aqui tomados em um sentido quantitativo
radical. É possível assim se chegar a um cálculo da felicidade da sociedade, obtido
através do somatório dos resultados destas operações para cada indivíduo. O
bom governo será aquele capaz de garantir o maior volume de felicidade líquida
para o maior número de cidadãos. Para cada ação ou questão política, é sempre
possível aplicar este raciocínio para avaliar a "utilidade" de seus
resultados.
Stuart Mill retém em sua obra o
princípio básico do utilitarismo, que vê no bem-estar assegurado o critério
último para a avaliação de qualquer governo ou sociedade. Entretanto,
estabelece uma distinção fundamental que o levará a trilhar caminhos opostos daqueles
advogados por seus mestres. Para Stuart Mill, a primeira dificuldade está em se
tomar a felicidade como algo passível de mensuração
puramente quantitativa. Na avaliação desta dimensão da natureza humana
intervém um elemento qualitativo que lhe é intrínseco. É
justamente esta a porta por onde Mill introduz uma alteração radical na
concepção sobre a natureza do homem. O Homem é um ser capaz de desenvolver suas
capacidades. E, ademais, faz parte de sua essência a necessidade deste
desenvolvimento.
Dessa forma temos um modelo
progressivo da natureza humana e um critério novo para a aferição de um bom
governo: "O grau em que ele tende a aumentar a soma das boas qualidades
dos governados, coletiva e individualmente", ou seja, a qualidade do bem
estar tem que sempre ser aumentada e nunca diminuída, e ainda inferindo
para um maior número de pessoas. E aqui vai se fundi a
utilidade da democracia e da liberdade. O governo democrático é melhor
porque nele encontramos as condições que favorecem o desenvolvimento das
capacidades de cada cidadão, de modo que ele sempre vai poder busca o melhor
para ele em termo de qualidade e não apenas quantidade em relação ao Estado.
Assim diz Mill:
“É um grande estímulo adicional à
auto-independência e à auto-confiança de qualquer pessoa o fato de saber que
está competindo em pé de igualdade com os outros, e que seu sucesso não depende
da impressão que puder causar sobre os sentimentos e as disposições de um corpo
do qual não faz parte. Ser deixado fora da Constituição é um grande
desencorajamento para um indivíduo e ainda maior para uma classe. [...] O
efeito revigorante da liberdade só atinge seu ponto máximo quando o indivíduo
está, ou se encontra em vias de estar, de posse dos plenos privilégios de
cidadão.”
Observe que Mill refere aqui,
também, a importância de ter um representante no Parlamento de cada classe,
para que essa se sinta em pé de igualdade e não se sinta desencorajados a
fazer o que lhe convem melhor para aumentar sua qualidade de vida, claro, respeitando
o limites que outros indivíduos também possui. Foi justamente na defesa desta
liberdade que Mill escreveu aquela que pode ser considerada sua obra maior: On
liberty (Sobre a liberdade). O argumento central desta obra assenta-se
numa proposição bastante simples, mas que até hoje não perdeu seu timbre de
novidade. O elogio da diversidade e do conflito como forças matrizes por
excelência da reforma e do desenvolvimento social.
Com a perspicácia que lhe é
característica, Mill aponta para o fato de que uma sociedade livre, na
medida mesmo em que propicia o choque das opiniões e o confronto das idéias e
propostas, cria condições ímpares para que "a justiça e a verdade"
subsistam. Desta forma, garante-se, através do conflito, o progresso e a auto-reforma
da sociedade. Em sociedades não livres (como a chinesa, nos diria
Mill), a reforma e o desenvolvimento social só podem aparecer como fruto do
acaso ou de esforços intermitentes levados a cabo por déspotas mais ou menos
esclarecidos. Para Mill, a liberdade não é um direito natural. Como
utilitarista, ele recusa a teoria dos direitos naturais. Mas a liberdade também
não é um luxo que interesse apenas a uma minoria esclarecida. É antes de mais
nada o substrato necessário para o desenvolvimento de toda a humanidade. E o é
principalmente porque ela torna possível a manifestação da diversidade, a qual,
por sua vez, é o ingrediente necessário para se alcançar a verdade.
Na obra de Mill encontramos,
portanto, a pré-história de duas noções muito caras à ciência política
contemporânea: a defesa do pluralismo e da diversidade societal contra
as interferências do Estado e da opinião pública (esta última, a tirania da
"opinião prevalecente", a pior, porque mais sistemática e cotidiana);
e a perspectiva de sistemas abertos, multipolares, onde a administração do
dissenso predomine sobre a imposiçäo de consensos amplos.
Um novo liberalismo
Em um artigo recentemente
publicado, Norberto Bobbio propôs que todo o problema político pode ser
sempre abordado segundo duas perspectivas diametralmente opostas: a do
príncipe, na ótica descendente, de quem vê a sociedade "de cima"; e a
perspectiva popular, ascendente, de quem é alvo do poder. Sem dúvida, estas
duas posições podem ser tomadas como extremos de um contínuo no qual poderiam
ser ordenadas todas as obras de reflexão sobre a política.
A era moderna incorporou uma nova
dimensão a esta primeira. Aquela que distingue uma concepção organicista
do indivíduo e da sociedade da concepção individualista.
O ponto de partida da concepção
organicista é a natureza social (e não apenas gregária) do homem. Isto
significa que, segundo esta visão, a natureza humana estaria condicionada pela
forma com que o indivíduo se insere no agrupamento social, mais especificamente
não existe o homem em geral (indivíduos), mas apenas homens social e
historicamente determinados. Do ponto de vista analítico, o grupo social vem em
primeiro lugar, e as ações humanas têm significado apenas na medida em que
espelham características do grupo ou refletem relações entre os grupos.
A concepção individualista, num
certo sentido, coloca o homem antes da sociedade e vê
nesta última, principalmente na sua instância política, um elemento de
artificialidade que não aparece na concepção organicista. Para esta
perspectiva de análise, as ações humanas são auto-referenciadas e importam em
si mesmas. Por isso, podemos dizer que esta concepção inverte a relação
indivíduo-grupo, fazendo do último um reflexo do primeiro. O
agregado social é, assim, o produto de uma espécie de soma vetorial das
atividades, interesses e impulsos dos indivíduos que o compõem.
Historicamente, a concepção
individualista nasceu em polêmica com a concepção organicista. Os argumentos
válidos em favor de uma ou de outra são ponderáveis. Entretanto, não é este o
local apropriado para o balanço deste debate. Para nós importa verificar que
compondo as duas dimensões que apresentamos nos parágrafos anteriores podemos
obter um modelo simples porém extremamente útil para a localização da obra de
Stuart Mill.
Stuart Mill é por muitos
considerado o grande representante do pensamento liberal democrático do século
passado. Com Mill, o liberalismo despe-se de seu ranço conservador, defensor do
voto censitário e da cidadania restrita, para incorporar em sua agenda todo um
elenco de reformas que vão desde o voto universal até a emancipação da mulher. Na
obra de Mill podemos acompanhar um esforço articulado e coerente para enquadrar
e responder as demandas do movimento operário inglês. De certa forma, a
obra de Mill pode ser tomada como um compromisso entre o pensamento liberal e
os ideais democráticos do século XIX. O fundamento deste compromisso está no
reconhecimento de que a participação política não é e não pode ser encarada
como um privilégio de poucos. E está também na aceitação de que, nas condições
modernas, o trato da coisa pública diz respeito a todos. Daí a preocupação de
Mill em dotar o estado liberal de mecanismos capazes de institucionalizar esta
participação ampliada.
Em Mill, não se trata apenas de
acomodar-se ao inevitável. A incorporação dos segmentos populares é para ele a
única via possível para salvar a liberdade inglesa de ser presa dos interesses
egoístas da próspera classe média. O voto para Mill não é um
direito natural. Antes, o voto é uma forma de poder, que deve ser estendido aos
trabalhadores para que estes possam defender seus direitos e interesses no mais
puro sentido que o liberalismo atribui a esta expressão. Nas palavras
de Mill:
Não devem existir párias em uma sociedade
adulta e civilizada. [...] As pessoas que, sem consulta prévia, se apoderam de
poderes ilimitados sobre os destinos dos outros degradam os seus semelhantes.
[...] É natural que os que são assim degradados não sejam tratados com a mesma
justiça que os que dispõem de uma voz. Os governantes e as classes governantes
tém a necessidade de levar em consideração os interesses e os desejos dos que
exercem o direito de voto; mas os interesses e os desejos dos que não o exercem
está a seu critério atendê-los ou não, e, por mais honestamente intencionados
que sejam, geralmente estão ocupados demais com o que devem levar em
consideração para terem tempo para se preocupar com o que podem negligenciar
impunemente.
Entretanto precisamos nos acautelar
para não vermos em Stuart Mill um pensador democrata radical. Para ele, a
tirania da maioria é tão odiosa quanto a da minoria. Isto porque ambas levariam
à elaboração de leis baseadas em interesses classistas. Um bom sistema representativo
é aquele que não permite "que qualquer interesse seccional se torne forte
o suficiente para prevalecer contra a verdade, a justiça e todos os outros
interesses seccionais juntos".
Mill colocou o individuo, e não a
sociedade, no centro de sua filosofia utilitarista. O importante é que
os indivíduos sejam livres para pensar e agir como queiram, sem interferência,
mesmo que seus atos os prejudiquem. Todo indivíduo, escreveu Mill no
ensaio Sobre a liberdade, é “soberano sobre seu próprio corpo e sua própria
mente.” Suas ideias deram corpo ao liberalismo vitoriano, abrandando as ideias
radicais que tinha conduzido a revoluções na Europa e na América e
combinando-as com a noção de individuo livre da interferência da autoridade.
Essa, para Mill, era a base para a justa governança e para o progresso social,
importantes ideais vitorianos. Ele acreditava que, se a sociedade
deixasse o individuo viver da forma que o fizesse feliz, isso lhe permitiria
atingir todo o seu potencial. O que beneficiaria toda a sociedade, já que as
realizações dos talentos isolados contribuem para o bem geral.
Durante sua vida, Mill foi
reconhecido como filosofo importante, hoje, muitos o consideram o arquiteto do
liberalismo vitoriano. Sua filosofia de inspiração utilitarista teve influencia
direta no pensamento social, politico, filosófico e econômico até o século XX. A
economia moderna foi moldada por varias interpretações de sua aplicação, do
utilitarismo ao mercado livre, especialmente pelo economista britânico John
Maynard Keynes. No campo da ética, filósofos como Bertrand Russel, Karl Popper,
William James e John Rawls tomaram Mill como ponto de partida.
Muito bom mesmo
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