Os que vencem não importa como vencem, nunca conquista a vergonha. |
Mais de quatro
séculos nos separam da época em que viveu Maquiavel. Muitos leram
e comentaram sua obra, mas um número consideravelmente maior de pessoas evoca
seu nome ou pelo menos os termos que aí têm sua origem. Maquiavélico e
maquiavelismo são adjetivo e substantivo que estão tanto no discurso erudito,
no debate político, quanto na fala do dia-a-dia. Seu uso extrapola o mundo da
política e habita sem nenhuma cerimónia o universo das relações privadas. Em
qualquer de suas acepções, porém, o maquiavelismo está associado à ideia de
perfídia, a um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Estas expressões
pejorativas sobreviveram de certa forma incólumes no tempo e no espaço, apenas
alastrando-se da luta política para as desavenças do cotidiano. Assim, a
acusação que recai hoje sobre Maquiavel não difere substancialmente daquela que
lhe impingiu Shakespeare ao chamá-lo de "The Murderous", ou de sua
identificação com o diabo na era vitoriana, ou mesmo da incriminação que os
jesuítas faziam aos protestantes na época da Reforma, considerando-os
discípulos de Maquiavel. Como assinala Claude Lefort, em sua análise sobre o
uso abrangente multi direcional de tais acusações, o maquiavelismo serve a
todos os ódios, metamorfoseia-se de acordo com os acontecimentos, já que pode
ser apropriado por todos os envolvidos em disputa. É uma forma de desqualificar
o inimigo, apresentando-o sempre como a encarnação do mal. Personificando a
imoralidade, o jogo sujo e sem escrúpulos, o "maquiavelismo", ou
melhor, o "antimaquiavelismo" tornou-se mais forte do que Maquiavel.
É um mito que sobrevive independente do conhecimento do autor ou da obra onde
teve origem.
A contra face da
versão expressa no "autor maldito", responsabilizado por massacres e
por toda sorte de sordidez. Houve também um certa tentativa de desconstrução
deste retrato ao qual acorreram a filósofos da estatura de um Rousseau,
de um Spinoza, de um Hegel, para citarmos apenas os primeiros. Nesta
interpretação sustenta-se enfaticamente que Maquiavel discorreu sobre a
liberdade, ao oferecer preciosos conselhos para a sua conquista ou salvaguarda.
Rousseau, por exemplo, opondo-se aos intérpretes "superficiais ou
corrompidos" do autor florentino, que o qualificaram como mestre da
tirania e da perversidade, afirma: "Maquiavel, fingindo dar lições aos
Príncipes, deu grandes lições ao povo" {Do contrato social, livro 3, cap.
IV).
Maquiavel ora
apresentado como mestre da maldade, ora como o conselheiro que alerta os
dominados contra a tirania, quem era este homem capaz de provocar tanto ódio,
mas também tanto amor? Que ideias elaborou que o tornam o mais citado entre os
pensadores políticos, a ponto de suscitar as mais díspares interpretações, e de
sair das páginas dos livros eruditos para ocupar um lugar na fala mais vulgar?
Por que incitou tamanho temor, sendo sua obra mais conhecida colocada no Index
da Igreja, e por que continua a dar ensejo a tão fundos preconceitos?
As desventuras de
um florentino
Maquiavel nasceu
em Florença em 3 de maio de 1469, numa Itália "esplendorosa mas infeliz'',
no dizer do historiador Garin. A península era então constituída por uma série
de pequenos Estados, com regimes políticos, desenvolvimento económico e cultura
variados. Tratava-se, a rigor, de um verdadeiro mosaico, sujeito a conflitos
contínuos e alvo de constantes invasões por parte de estrangeiros. Até 1494,
graças aos esforços de Lourenço, o Magnífico, a península experimentou uma
certa tranquilidade. Cinco grandes Estados dominavam o mapa político: ao sul, o
reino de Nápoles, nas mãos dos Aragão; no centro, os Estados papais controlados
pela Igreja e a república de Florença, presidida pelos Médicis; ao norte, o
ducado de Milão e a república de Veneza. Nos últimos anos do século,
entretanto, a desordem e a instabilidade eram incontroláveis. Às dissensões
internas e entre regiões somaram-se as invasões das poderosas nações vizinhas,
França e Espanha. Assim, os Médicis são expulsos de Florença; acirram-se as
discórdias entre Milão e Nápoles; os domínios da Igreja passam a ser governados
por Alexandre VI, um papa espanhol da família Borgia, guiado por ambições sem
limites; o rei Carlos VIII, da França, invade a península e consegue dominá-la
de Norte a Sul. Pouco tempo depois, com a morte do papa Alexandre VI, o trono é
ocupado por Júlio II, que se alia primeiro aos franceses contra Veneza e em
seguida, em 1512, funda a Santa Liga contra a França. Neste cenário conturbado,
no qual a maior parte dos governantes não conseguia se manter no poder por um
período superior a dois meses, Maquiavel passou sua infância e adolescência.
Sua família não era nem aristocrática, nem rica. Seu pai, advogado, como um
típico renascentista, era um estudioso das humanidades, tendo se empenhado em
transmitir uma aprimorada educação clássica para seu filho. Dessa forma, com
orgulho, noticiava a um amigo que Nicolau, com apenas 12 anos, já redigia no
melhor estilo em latim, dominando a retórica greco-romana.
Como o próprio
Maquiavel afirmava seus textos são os que resultam de sua experiência prática e
do convívio com os clássicos. “O Príncipe” data dos anos de 1512 a 1513; Os
“Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, de 1513 a 1519; o livro
sobre a “Arte da guerra”, de 1519 a 1520; e, por último, sua “História de
Florença”, de 1520 a 1525. Ao lado destas publicações, escreveu a comédia “A
mandrágora”, considerada obra-prima do teatro italiano; uma biografia sobre
Castruccio Castracani e uma coleção de poesias e ensaios literários.
Depois da
redação de O príncipe, a vida de Maquiavel é marcada por uma contínua
alternância de esperanças e decepções. Para conseguir os favores dos Médicis
dedica-lhes seu livro e pede a intervenção de amigos. Os governantes são pouco
sensíveis aos apelos — para os tiranos ele é um republicano. Finalmente, em
1520, a Universidade de Florença, presidida pelo cardeal Júlio de Médicis,
encarrega-o de escrever sobre Florença. Desta incumbência nasce sua última obra
e também sua última frustração. Pois, com a queda dos Médicis em 1527 e a
restauração da república, Maquiavel, que imaginara terem assim findados seus
infortúnios, vê-se identificado pelos jovens republicanos como alguém que
possuía ligações com os tiranos depostos, já que deles recebera a tarefa de escrever
sobre sua cidade. Desta vez, viu-se vencido. Esgotaram-se suas forças. A
república considerou-o seu inimigo. Desgostoso, adoece e morre em junho.
A verdade efetiva
das coisas
O destino
determinou que eu não saiba discutir sobre a seda, nem sobre a lã; tampouco
sobre questões de lucro ou de perda. Minha missão é falar sobre o Estado. Será
preciso submeter-me à promessa de emudecer, ou terei que falar sobre ele.
(Carta a F. Vettori, de 13/03/1513.)
Este trecho de uma carta escrita por Maquiavel revela sua "pre-destinação" inarredável: falar sobre o Estado. De fato, sua preocupação em todas as suas obras é o Estado. Não o melhor Estado, aquele tantas vezes imaginado, mas que nunca existiu. Mas o Estado real, capaz de impor a ordem. Maquiavel rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e segue a trilha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Lívio. Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na verdade efetiva das coisas. Esta é sua regra metodológica: ver e examinar a realidade tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse. A substituição do reino do dever ser, que marcara a filosofia anterior, pelo reino do ser, da realidade, leva Maquiavel a se perguntar: como fazer reinar a ordem, como instaurar um Estado estável? O problema central de sua análise política é descobrir como pode ser resolvido o inevitável ciclo de estabilidade e caos.
Ao formular e
buscar resolver esta questão, Maquiavel provoca uma ruptura com o saber
repetido pelos séculos. Trata-se de uma indagação radical e de uma nova
articulação sobre o pensar e fazer política, que põe fim à ideia de uma ordem
natural e eterna. A ordem,
produto necessário da política, não é natural, nem a materialização de uma
vontade extraterrena, e tampouco resulta do jogo de dados do acaso. Ao
contrário, a ordem tem um imperativo: deve ser construída pelos homens para se
evitar o caos e a barbárie, e, uma vez alcançada, ela não será definitiva, pois
há sempre, em germe, o seu trabalho em negativo, isto é, a ameaça de que seja
desfeita. "Enveredando
por um caminho ainda não trilhado", como reconhece explicitamente nos
Discursos, o autor florentino reinterpreta a questão da política.
Ela é o resultado de feixes de forças, proveniente das açòes concretas dos homens em sociedade, ainda que nem todas as suas facetas venham do reino da racionalidade e sejam de imediato reconhecíveis. Ao perceber o que há de transitório e circunstancial no arranjo estabelecido em uma determinada ordem, monta um enigma para seus contemporâneos. Enigma que se recoloca incessantemente e que a cada significado encontrado remete a outra significação para além de si. Este pensamento em constante transmutação e fluxo, que determina seu curso pelo movimento da realidade, transformará Maquiavel num clássico da filosofia política, atraindo a atenção e esforços de compreensão de seus leitores de todos os tempos. Tem-se sempre a sensação de que é necessário ler, reler, e voltar a ler a obra e que são infindáveis as suas possibilidades de formalização. Sua armadilha é atraente — fala do poder que todos sentem, mas não conhecem. Porém, para conhecê-lo é preciso suportar a ideia da incerteza, da contingência, de que nada é estável e que o espaço da política se constitui e é regido por mecanismos distintos dos que norteiam a vida privada. E mais ainda: o mundo da política não leva ao céu, mas sua ausência é o pior dos infernos.
Por outro lado,
a forma que usa para expor suas ideias exige atenção. Não só porque recoloca e
problematiza velhos temas, mas sobretudo porque rediscute-os incessantemente,
obrigando o leitor a pôr sempre em xeque a primeira compreensão. Por isso,
qualquer tentativa de sistematizar os escritos de Maquiavel é sempre provisória
e sujeita a novas interpretações. Vale assim, para os seus escritos, a mesma
metodologia que usava para ler a realidade e, afinal, de há muito sua obra
deixou de ser apenas uma referência de erudição ilustrada. Pelo que significa e
tem significado nas práticas históricas é ela própria simultaneamente um
monumento e um instrumento político, retornando sempre como um enigma complexo
que só pode ser decifrado pela análise de sua presença concreta e sua venta
effettuale (verdade efetiva). Isto posto, ocupemo-nos do exame de alguns temas
vitais para a compreensão da intrincada construção do pensamento de Maquiavel.
E claro que este é apenas um ângulo possível num prisma multifacetado.
Natureza humana e
historia
Guiado pela
busca da "verdade efetiva", Maquiavel estuda a história e reavalia
sua experiência como funcionário do Estado. Seu
"diálogo" com os homens da antiguidade clássica e sua prática
levam-no a concluir que por toda parte, e em todos os tempos, pode-se observar
a presença de traços humanos imutáveis. Daí afirmar, os homens "são
ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os perigos, ávidos de
lucro" {O príncipe, cap. XVII). Estes atributos negativos compõem a
natureza humana e mostram que o conflito e a anarquia são desdobramentos necessários
dessas paixões e instintos malévolos. Por outro lado, sua reiterada permanência
em todas as épocas e sociedades transformam a história numa privilegiada fonte
de ensinamentos. Por isso, o estudo do passado não é um exercício de mera
erudição, nem a história um suceder de eventos em conformidade com os desígnios
divinos até que chegue o dia do juízo final, mas sim um desfile de fatos dos
quais se deve extrair as causas e os meios utilizados para enfrentar o caos
resultante da expressão da natureza humana. Desta forma, sustenta o pensador
florentino, aquele que estudar cuidadosamente o passado pode prever os
acontecimentos que se produzirão em cada Estado e utilizar os mesmos meios que
os empregados pelos antigos. Ou então, se não há mais os remédios que já foram empregados,
imaginar outros novos, segundo a semelhança dos acontecimentos. (Discursos,
livro I. cap. XXXIX.) A
história é cíclica, repete-se indefinidamente, já que não há meios absolutos
para "domesticar" a natureza humana. Assim, a ordem sucede à desordem
e esta, por sua vez, clama por uma nova ordem. Como, no entanto, é impossível
extinguir as paixões e os instintos humanos, o ciclos se repete. O que pode
variar — e nesta variação encontra-se o âmago da capacidade criadora humana e,
portanto, da política — são os tempos de duração das formas de convívio entre
os homens. O poder político tem, pois, uma origem mundana. Nasce da própria
"malignidade" que é intrínseca à natureza humana. Além disso, o poder
aparece como a única possibilidade de enfrentar o conflito, ainda que qualquer
forma de "domesticação" seja precária e transitória. Não há garantias de sua
permanência. A perversidade das paixões humanas sempre volta a se manifestar,
mesmo que tenha-permanecido oculta por algum tempo.
Para mudar tal
situação não é um ditador; é, mais propriamente, um fundador do Estado, um
agente da transição numa fase em que a nação se acha ameaçada de decomposição.
Quando, ao contrário, a sociedade já encontrou formas de equilíbrio, o poder
político cumpriu sua função regeneradora e "educadora", ela está
preparada para a República.
Neste regime, que por vezes o pensador florentino chama de liberdade, o povo é virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a dinâmica das relações sociais. Os conflitos são fonte de vigor, sinal de uma cidadania ativa, e portanto são desejáveis. Face à Itália de sua época — dividida, corrompida, sujeita às invasões externas — Maquiavel não tinha dúvidas: era necessário sua unificação e regeneração. Tais tarefas tornavam imprescindível o surgimento de um homem virtuoso capaz de fundar um Estado. Era preciso, enfim, um príncipe.
Anarquia x Principado
e Republica
À desordem
proveniente da imutável natureza humana, Maquiavel acresce um importante fator
social de instabilidade: a presença inevitável, em todas as sociedades, de duas
forças opostas, "uma das quais provém de não desejar o povo ser dominado
nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir
o povo" {O príncipe, cap. IX).
Note-se que uma das forças quer dominar, enquanto a outra não quer ser dominada. Se todos quisessem o domínio, a oposição seria resolvida pelo governo dos vitoriosos. Contudo, os vitoriosos não sufocam definitivamente os vencidos, pois estes permanecem não querendo o domínio. O problema político é então encontrar mecanismos que imponham a estabilidade das relações, que sustentem uma determinada correlação de forças. Maquiavel sugere que há basicamente duas respostas à anarquia decorrente da natureza humana e do confronto entre os grupos sociais:, o Principado e a República. A escolha de uma ou de outra forma institucional não depende de um mero ato de vontade ou de considerações abstratas e idealistas sobre o regime, mas da situação concreta. Assim, quando a nação encontra-se ameaçada de deterioração, quando a corrupção alastrou-se, é necessário um governo forte, que crie e coloque seus instrumentos de poder para inibir a vitalidade das forças desagregadoras e centrífugas. O príncipe.
Virtù X fortuna
A crença na
predestinação dominava há longo tempo. Este era um dogma que Maquiavel teria
que enfrentar, por mais fortes que fossem os rancores que atraísse contra si.
Afinal, a atividade política, tal como arquitetara, era uma prática do homem
livre de freios extraterrenos, do homem sujeito da história. Esta prática
exigia virtú, o domínio sobre a fortuna.
Para pensar a virtú e a fortuna mais uma vez Maquiavel recorre aos ensinamentos dos historiadores clássicos, buscando contrapô-los aos preceitos dominantes na Itália seiscentista. Para os antigos, a Fortuna não era uma força maligna inexorável. Ao contrário, sua imagem era a de uma deusa boa, uma aliada potencial, cuja simpatia era importante atrair. Esta deusa possuía os bens que todos os homens desejavam: a honra, a riqueza, a glória, o poder. Mas como fazer para que a deusa Fortuna nos favorecesse e não a outros, perguntavam-se os homens da antiguidade clássica? Era imprescindível seduzi-la, respondiam. Como se tratava de uma deusa que era também mulher, para atrair suas graças era necessário mostrar-se um homem de verdadeira virilidade, de inquestionável coragem. Assim, o homem que possuísse virtú no mais alto grau seria beneficiado com os presentes da cornucópia da Fortuna. Esta visão foi inteiramente derrotada com o triunfo do cristianismo. A boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por um "poder cego", inabalável, fechado a qualquer influência, que distribui seus bens de forma indiscriminada. A Fortuna não tem mais como símbolo a cornucópia, mas a roda do tempo, que gira indefinidamente sem que se possa descobrir o seu movimento. Nessa visão, os bens valorizados no período clássico nada são. O poder, a honra, a riqueza ou a glória não significam felicidade. Esta não se realiza no mundo terreno. O destino é uma força da providência divina e o homem sua vítima impotente. Maquiavel inicia o penúltimo capítulo de O príncipe referindo-se a esta crença na fatalidade e à impossibilidade dos homens alterarem o seu curso. Chega, inclusive, com certa ironia, a afirmar que se inclinou a concordar com essa opinião. No entanto, o desenrolar de sua exposição mostra-nos, com toda clareza, que se trata de uma concordância meramente estratégica. Concorda para poder desenvolver os argumentos da discordância. Assim, após admitir o império absoluto da Fortuna, reserva, poucas linhas a seguir, ao livre-arbítrio pelo menos o domínio da metade das ações humanas. E termina o capítulo demonstrando a possibilidade da virtú conquistar a fortuna.
Assim, Maquiavel
monta um cenário no qual a liberdade do homem é capaz de amortecer o suposto
poder incontrastável da Fortuna. Ou melhor dizendo, ao se indagar sobre a
possibilidade de se fazer uma aliança com a Fortuna, esta não é mais uma força
impiedosa, mas uma deusa boa, tal como era simbolizada pelos antigos. Ela é
mulher, deseja ser seduzida e está sempre pronta a entregar-se aos homens
bravos, corajosos, aqueles que demonstram ter virtú. Não cabe nesta imagem a
ideia da virtude cristã que prega uma bondade angelical alcançada pela
libertação das tentações terrenas, sempre à espera de recompensas no céu. Ao
contrário, o poder, a honra e a glória, típicas tentações mundanas, são bens
perseguidos e valorizados. O homem de virtú pode consegui-los e por eles luta.
Dessa forma, o poder que nasce da própria natureza humana e encontra seu
fundamento na força é redefinido. Não se trata mais apenas da força bruta, da
violência, mas da sabedoria no uso da força, da utilização virtuosa da força. O
governante não é, pois, simplesmente o mais forte — já que este tem condições
de conquistar mas não de se manter no poder —, mas sobretudo o que demonstra
possuir virtú, sendo assim capaz de manter o domínio adquirido e se não o amor,
pelo menos o respeito dos governados.
A partir destas
variáveis pode-se retornar, mais uma vez, ao início de O príncipe e dar um novo
significado à distinção aparentemente formal entre os principados hereditários
e os novos. Maquiavel sublinha que o poder se funda na força mas é necessário
virtú para se manter no poder; mais nos domínios recém-adquiridos do que
naqueles há longo tempo acostumados ao governo de um príncipe e sua família.
No entanto, nem
mesmo o principado hereditário é seguro. Sua advertência — não há garantias de
que o domínio permaneça — vale para todas as formas de organização do poder. Um governante virtuoso procurará
criar instituições que "facilitem" o domínio. Consequentemente, sem
virtú, sem boas leis, geradoras de boas instituições, e sem boas armas, um
poder rival poderá impor-se. Destes constrangimentos não escapam nem mesmo os
principados hereditários que pareciam a princípio tão seguros. Afora isto, como
sustentar a radical distinção entre os principados antigos e os novos, se ambos
têm igual origem — a força? A força explica o fundamento do poder, porém é a
posse de virtú a chave por excelência do sucesso do príncipe. Sucesso este que
tem uma medida política: a manutenção da conquista. O governante tem que se
mostrar capaz de resistir aos inimigos e aos golpes da sorte, "construindo
diques para que o rio não inunde a planície, arrasando tudo o que encontra em
seu caminho". O homem de virtú deve atrair os favores da cornucópia,
conseguindo, assim, a fama, a honra e a glória para si e a segurança para seus
governados. É desta perspectiva que ganha um novo sentido a discussão sobre as
qualidades do príncipe. Este deveria ser bom, honesto, liberal, cumpridor de
suas promessas, conforme rezam os mandamentos da virtude cristã? Maquiavel é
incisivo: há vícios que são virtudes. Não tema pois o príncipe que deseje se
manter no poder "incorrer no opróbrio dos defeitos mencionados, se tal for
indispensável para salvar o Estado". (O príncipe, cap. XV). Os ditames da
moralidade convencional podem significar sua ruína. Um príncipe sábio deve
guiar-se pela necessidade — "aprender os meios de não ser bom e a fazer
uso ou não deles, conforme as necessidades". Assim, a qualidade exigida do
príncipe que deseja semanter no poder é sobretudo a sabedoria de agir conforme
as circunstâncias. Devendo, contudo, aparentar possuir as qualidades
valorizadas pelos governados. O jogo entre a aparência e a essência sobrepõe-se
à distinção tradicional entre virtudes e vícios. A virtú política exige também
os vícios, assim como exige o reenquadramento da força. O agir virtuoso é um
agir como homem e como animal. Resulta de uma astuciosa combinação da
virilidade e da natureza animal. Quer como homem, quer como leão (para
amedrontar os lobos), quer como raposa (para conhecer os lobos), o que conta é
"o triunfo das dificuldades e a manutenção do Estado. Os meios para isso nunca deixarão de
ser julgados honrosos, e todos os aplaudirão"{O príncipe, cap. XVIII).
A política tem uma ética e uma lógica próprias. Maquiavel
descortina um horizonte para se pensar e fazer política que não se enquadra no
tradicional moralismo piedoso. A resistência à aceitação da radicalidade de
suas proposições é seguramente o que dá origem ao "maquiavélico". A
evidência fulgurante deste adjetivo acaba velando a riqueza das descobertas
substantivas. O mito, uma
constante em sua obra, é falado para ser desmistificado. Maquiavel não o aceita
como quer a tradição — algo naturalizado e eterno. Recupera no mito as questões
que aí jaziam adormecidas e pacificadas. E, ao fazer isto, subverte as
concepções acomodadas, de há muito
estabelecidas, instaurando a modernidade no pensar a
política. Ora, desmistificar tem sempre um alto risco. O cidadão
florentino pagou-o em vida e sua morte não lhe trouxe o descanso do esquecimento.
Transformado em mito, é novamente vitimizado.
O pensamento político moderno e critico, para decifrar
o enigma proposto em sua obra, precisa resgatá-lo sem preconceitos e
em sua verità effettuale. É o que se deve a Nicolau Maquiavel, o cidadão
sem fortuna, o intelectual de virtú.
Olá, muito interessante seu blog e da visão correta sobre Maquiavel, que nunca proferiu a frase da qual ficou estigmatizado "O fim justisficam os meios". Por favor, continue a discorrer sobre mais assuntos destes grandes filósofos. Obrigada pela excelente dissertação.
ResponderExcluir