O governo central seria uma espécie de monstro - o Leviatã |
Podemos entender
por que Hobbes é, com Maquiavel e em certa medida Rousseau, um dos pensadores
mais "malditos" da história da filosofia política - pois, no século
XVII, o termo "hobbista", é quase tão ofensivo quanto
"maquiavélico". Não é só porque apresenta o Estado como monstruoso, e
o homem como belicoso, rompendo com a confortadora imagem aristotélica do bom
governante e do indivíduo de boa natureza. Não é só porque subordina a religião
ao poder político. Mas é também porque nega um direito natural ou sagrado do
indivíduo à propriedade.
No seu tempo, e
ainda hoje, a burguesia vai procurar fundar a propriedade privada num direito
anterior e superior ao Estado: por isso ela endossará Locke, dizendo que a
finalidade do poder público consiste em proteger a propriedade. Um direito aos
bens que dependa do beneplácito do governante vai frontalmente contra a
pretensão da burguesia a controlar, enquanto classe, o poder de Estado; e, como
isso é o que vai acontecer na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688), o
pensamento hobbesiano não terá campo de aplicação em seu
próprio país, nem em nenhum outro.
O resultado pode
parecer frustrante, para um pensador que escreveu as três versões de sua filosofia
política enquanto o seu país vivia terrível guerra civil (De corpore
politico, 1640; De cive, 1642; Leviatã, 1651), e considerava que
esses livros ofereciam a única base para fundar um Estado que desse, aos
homens, não apenas a sobrevivência, mas a melhor condição material - paz e
conforto.
"A
ciência política não é mais antiga que meu livro De cive", disse
Hobbes, desqualificando em especial o pensamento aristotélico, então ainda
dominante, mas que para ele era sem medita a tamanha grosseria ali exposta, na
obra de Aristóteles, de tal modo que não poderia sequer ser considerada ciência
politica. E apesar da inúmeras criticas feita a teoria de Hobbes, ainda hoje
ele é um pensador importantíssimo para a ciência politica, pois ele tal como
Maquiavel, foi um dos primeiros que indicou um caminho a ser percorrido, numa
tentativa de avaliar as coisas tais como são e não como gostaríamos que fosse,
e a partir dai fundamenta um Estado com base nessas premissas.
Hobbes: o medo e a
esperança
Hobbes é um contratualista,
quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o XVIII
(basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está num
contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização - que
somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras
de convívio social e de subordinação política.
Sir Henry Maine
- por exemplo - criticou-os asperamente: Seria impossível, dizia ele,
selvagens que nunca tiveram contato social dominarem a tal ponto a linguagem,
conhecerem uma noção jurídica tão abstrata quanto a de contrato, para que
pudessem se reunir nas clareiras das florestas e fazerem um pacto social. Na
verdade, o contrato só é possível quando há noções que nascem de uma longa
experiência da vida em sociedade - Mas é preciso ver que erro Maine cometeu:
Raro, ou nenhum, contratualista pensou que selvagens isolados se juntam numa
clareira para fazer um simulacro de constituinte. Voltaremos a isso depois, por ora, tenha isso em mente: o homem natural
de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor
dizendo, a natureza do homem não muda conforme o tempo, ou a história, ou a
vida social, para Hobbes, como para a maior parte dos autores de antes do
século XVIII, não existe a história entendida como transformadora dos homens.
Estes não mudam. É por isso que Hobbes, e outros, citam os gregos e romanos
quando querem conhecer ou exemplificar algo sobre o homem, mesmo e seu tempo.
Mas, afinal como
o homem é naturalmente para Hobbes? Segundo ele "A natureza fez os homens tão
iguais, quanto ás capacidades do corpo (físico) e do espírito
(intelectualmente), que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente
mais forte de corpo ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando
se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é
suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar
qualquer benefício a si próprio que outro também não possa aspirar. Porque quanto à força corporal o mais
fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta
maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo
perigo. E Quanto ás faculdades do espírito ele encontra entre os homens uma
igualdade ainda maior do que a igualdade de força. Porque ás faculdades de
espirito nada mais é do que experiência, que um tempo igual igualmente
oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam.
Para Hobbes, o
que talvez possa tornar inaceitável essa ideias entre os homens, é que essa
igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase
todos os homens supõe possuir em maior grau do que o vulto; quer dizer, em
maior grau do que todos menos eles próprios, e alguns outros que, ou devido à
fama ou devido a concordarem com eles, merecem sua aprovação. Pois a natureza dos homens é tal
que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência,
maior eloquência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão
sábios como eles próprios; porque vêem sua própria sabedoria bem de perto, e a
dos outros homens à distância. Mas isto prova que os homens são iguais quanto a
esse ponto, e não que sejam desiguais.
É importante
ressaltar que ele não afirma que os homens são absolutamente
iguais, mas que são "tão iguais que...": iguais o bastante para que
nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro.
Todo homem é
opaco aos olhos de seu semelhante - eu
não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual
será a sua atitude mais prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que
quero, também é forçado a supor o que farei. Dessa suposições recíprocas,
decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para
vencê-lo, ou simplesmente para evita um ataque possível: assim a guerra se
generaliza entre os homens. Por
isso, se não há um Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os
outros é a atitude mais racional que eu posso adotar. É preciso enfatizar
esse ponto, para ninguém pensar que o "homem lobo do homem", em
guerra contra todos, é um anormal; suas ações e cálculos são os únicos
racionais, no estado de natureza para Hobbes.
Da igualdade
quanto à capacidade de força e de espirito deriva a igualdade quanto á
esperança de atingirmos
nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que
é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho
para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas
seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.
E disto se segue
quando um invasor nada mais tem a recear do poder de um único outro homem, ou
seja, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é
provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas,
para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também
de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo
em relação aos outros. E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros,
nenhuma maneira de se estar garantido é tão razoável como a antecipação;
isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que
puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja
qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo, atacando primeiro antes
de ser atacado. E isto não é mais do que sua própria conservação exige,
conforme é geralmente admitido. Também
por causa de alguns que, comprazendo-se em contemplar seu próprio poder nos
atos de conquista, levam estes atos mais longe do que sua segurança exige, se
outros que, do contrário, se contentariam em manter-se tranqüilamente dentro de
modestos limites, não aumentarem seu poder por meio de invasões, eles serão
incapazes de subsistir durante muito tempo, se se limitarem apenas a uma
atitude de defesa. Consequentemente
esse aumento do domínio sobre os homens, sendo necessário para a conservação de
cada um, deveria ser por todos admitido.
E dessa forma,
os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo
contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a
todos em respeito, porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o
mesmo valor que ele se atribui a si próprio, e ainda de modo que na natureza do
homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição,
segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a
atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira,
a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das
pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para
defende-se por antecipação ou por segurança; e os terceiros por ninharias, como
uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de
desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a
seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.
Com isto se
torna manifesto que durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum
capaz de os manter a todos em respeito, em ordem eles se encontrarão naquela
condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra
todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de
lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é
suficientemente conhecida e provável, portanto, para Hobbes, a noção de tempo
deve ser levada em conta quanto á natureza da guerra, do mesmo modo que quanto
à natureza do clima. Porque
tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas
numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a
natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para
tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário.
Hobbes tem perfeita
consciência de que essa definição há de chocar seus leitores, que se prendem à
definição aristotélica do homem como zoon politikon, animal social.
Para Aristóteles, o homem naturalmente vive em sociedade, e só desenvolve todas
as suas potencialidades dentro do Estado. Esta é a convicção da maioria das
pessoas, que preferem fechar os olhos à tensão que há na convivência com os
demais homens, e conceber a relação social como harmônica. Por isso Hobbes
acrescenta um apelo á experiência pessoal:
“Que seja,
portanto, a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e
procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo
quando está em casa tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e
funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa
ser feita. Então que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de
seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando
tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos
como eu o faço com minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza
humana.” - O que Hobbes
pede, então, é um exame de consciência: - "conhece-te a ti mesmo".
Estamos
carregados de preconceitos que vêm basicamente de Aristóteles e da filosofia
escolástica medieval. Mas o mito de que o homem é sociável por natureza nos
impede de identificar onde está o conflito, e de contê-lo. A política só será
uma ciência se soubermos como o homem é de fato, e não na ilusão; e só com a
ciência política será possível construirmos Estados que se sustentem, em vez de
tornarem permanente a guerra civil.
Há um ditado que
ultimamente tem sido muito usado; que a sabedoria não se adquire pela leitura
dos livros, mas do homem. Em consequência do que aquelas pessoas, que regra
geral são incapazes de apresentar outras provas de sua sabedoria, comprazem-se
em mostrar o que pensam ter lido nos homens, através de impiedosas censuras que
fazem umas às outras, por trás das costas. Mas há um outro ditado que
ultimamente não tem sido compreendido, graças ao qual os homens poderiam
realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao trabalho de
fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum, "Lê-te a ti mesmo". Ensinar-nos
que, a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos diferentes
homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, e examine o que faz quando
pensa, opina, raciocina, espera, receia etc., e por que motivos o faz, poderá
por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e paixões de todos os
outros homens, em circunstâncias idênticas. Refiro-me á semelhança das paixões,
que são as mesmas em todos os homens, desejo, medo, esperança etc., e não à
semelhança dos objetos das paixões, que são as coisas desejadas, temidas,
esperadas etc.
A constituição
individual e a educação de cada um são tão variáveis, e são tão fáceis de
ocultar a nosso conhecimento, que os caracteres do coração humano, emaranhados
e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às
doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações. E,
embora por vezes descubramos os desígnios dos homens através de suas ações,
tentar fazê-lo sem compará-las com as nossas, distinguindo todas as
circunstâncias capazes de alterar o caso, é o mesmo que decifrar sem ter uma
chave, e deixar-se o mais das vezes enganar, quer por excesso de confiança ou
por excesso de desconfiança, conforme aquele que lê seja um bom ou um mau
homem. Mas mesmo que um homem seja capaz de ler perfeitamente um outro através
de suas ações, isso servir-lhe-á apenas com seus conhecidos, que são muito
poucos. Aquele que vai governar uma nação inteira deve ler, em si mesmo, não
este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. O que é coisa difícil,
mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência, mas ainda
assim, depois de eu ter exposto claramente e de maneira ordenada minha própria
leitura, o trabalho que a outros caberá será apenas verificar se não encontram
o mesmo em si próprios. Pois esta espécie de doutrina não
admite outra demonstração, explica Hobbes no livro o Leviatã .
Como por fim a
esse conflito?
Para Hobbes, o
homem é o indivíduo. Mas atenção, antes de falarmos em individualismo burguês. O indivíduo hobbesiano não almeja
tanto os bens, mas a honra. Entre as causas da violência, uma das principais
reside na busca da glória, quando os homens se batem "por ninharias, como
uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de
desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a
seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome. A honra é o
valor atribuído a alguém em função das aparências externas.
O homem
hobbesiano não é então um homo oeconomicus, porque seu maior
interesse não está em produzir riquezas, nem mesmo em pilhá-las. O mais
importante para ele é ter os sinais de honra, entre os quais se inclui a
própria riqueza (mais como meio, do que como fim em si). Quer dizer que o homem
vive basicamente de imaginação. Ele imagina ter um poder, imagina ser
respeitado - ou ofendido - pelos semelhantes, imagina o que o outro vai fazer.
Da imaginação - e neste ponto Hobbes concorda com muitos pensadores do século
XVII e XVIII - decorrem perigos, porque o homem se põe a fantasiar o que é
irreal. O estado de
natureza é uma condição de guerra, porque cada um se imagina (com razão ou sem)
poderoso, perseguido, traído.
Como pôr termo a
esse conflito? Há uma base jurídica para isso; depois do direito de natureza (o direito que todos tem, independente
de qualquer coisa externa que os proíba, como o Estado e etc, Direito Natural),
Hobbes define o que é a lei de
natureza (é aquilo que o
Estado estipula como adequado para a sobrevivência do homem, segundo o
entendimento do governante, Direito Positivo) :
"Uma lei de
natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela
razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua
vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que
pense poder contribuir melhor para preservá-la. Porque embora os que têm
tratado deste assunto costumem confundir o direito e
a lei, é necessário distingui-los um do outro. Pois o direito consiste na
liberdade de fazer ou de omitir algo, ao passo que a lei determina ou obriga a
uma dessas duas coisas (fazer ou omitir). De
modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade,
as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria.
Assim, para
Hobbes, todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos
outros. Mas a partir disso é necessário haver uma lei que proíba certos ou
autorize certos direitos.
Portanto,
enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá
haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver
todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. Consequentemente é um preceito ou regra geral da
razão, Que todo homem deve esforçar-se pela
paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode
procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta
regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz,
e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos
os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.
Desta lei
fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que
procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando
outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e
para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas,
contentando-se em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos
outros homens permite em relação a si mesmo.
Porque enquanto
cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira todos os homens se
encontrarão numa condição de guerra. Mas se os outros homens não renunciarem a
seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se
prive do seu, pois isso equivaleria a oferecer-se como presa, e não a dispor-se
para a paz.
Mas não basta o
fundamento jurídico. É preciso que exista um Estado dotado da espada, armado,
para forçar os homens ao respeito. Desta maneira, aliás, a imaginação será
regulada melhor, porque cada um receberá o que o soberano determinar. Porque as
leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia,
a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam)
por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser
respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem
tender para a parcialidade,
o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. Os pactos sem a espada não passam de palavras, sem
força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de
natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las), se não for
instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um
confiará apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos
os outros.
Em todos os
lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se uns
aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser considerada
contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior
era a honra adquirida. Para Hobbes, então, o poder do Estado tem que ser pleno.
O Estado medieval não conhecia poder absoluto, nem soberania - os poderes do
rei eram contrabalançados pelos da nobreza, das cidades e dos Parlamentos. Jean
Bodin, no século XVI, é o primeiro teórico a afirmar que no Estado deve haver
um poder soberano, isto é, um foco de autoridade que possa resolver todas as
pendências e arbitrar qualquer decisão. Hobbes
desenvolve essa idéia, e monta um Estado que é condição para existir a própria
sociedade. A sociedade nasce com o Estado, ou seja, para Hobbes a única maneira
de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros
e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente
para que, mediante seu próprio labor possam alimentar-se e viver satisfeitos, é
conferindo toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens,
que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só
vontade. - Até esse ponto
poucos doutrinadores fundamentara a soberania estatal melhor do que Hobbes,
devido a isto, sua importância para a ciência politica é se torna notória.
Funcionamento
Estatal Hobbesiano.
Continuando aqui
ainda a teoria hobbesiana: Designar um homem ou uma assembleia de homens como
representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como
autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a
praticar, em tudo o que disser respeito á paz e segurança comuns; todos
submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões à
sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira
unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada
homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada
homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem,
ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu
direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.
Feito isto, à
multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, ou em
latim civitas. É nele que consiste a essência do Estado, a qual
pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão,
mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como
autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que
considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.
Aquele que é
portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder
soberano. Todos os restantes são súditos." Por isso, o
poder do governante tem que ser ilimitado. Pois, se ele sofrer alguma limitação,
se o governante tiver de respeitar tal ou qual obrigação (por exemplo, tiver
que ser justo) - então quem irá julgar se ele está sendo ou não justo? Quem
julgar terá também o poder de julgar se o príncipe continua príncipe ou não - e
portanto será, ele que julga, a autoridade suprema. Ou seja, para Hobbes não há
alternativa: ou o poder é absoluto, ou continuamos na condição de guerra, entre
poderes que se enfrentam. Para montar o poder absoluto, Hobbes concebe um
contrato diferente, sui generis. Observemos que o soberano não
assina o contrato - este é firmado apenas pelos que vão se tornar súditos, não
pelo beneficiário. Por uma razão simples: no momento do contrato não existe
ainda soberano, que só surge devido ao contrato. Disso resulta que ele se conserva
fora dos compromissos, e isento de qualquer obrigação.
É desta
instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele
ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do
povo reunido. Em primeiro lugar, na medida em que pactuam, deve entender-se que
não se encontram obrigados por um pacto anterior a qualquer coisa que
contradiga o atual. Consequentemente, aqueles que já instituíram um Estado,
dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de
alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de
obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença. Portanto, aqueles que
estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à
monarquia, voltando á confusão de uma multidão desunida. Por outro lado, cada
homem conferiu a soberania àquele que é portador de sua pessoa, portanto se o
depuserem estarão tirando-lhe o que é seu, o que também constitui injustiça.
Além do mais, se aquele que tentar depor seu soberano for morto, ou por ele
castigado devido a essa tentativa, será o autor de seu próprio castigo, dado
que por instituição é autor de tudo quanto seu soberano fizer. E, dado que
constitui injustiça alguém fazer coisa devido à qual possa ser castigado por
sua própria autoridade, também a esse título ele estará sendo injusto, dado que
o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado
soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não
entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto a parte
do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição, sob
qualquer pretexto de infração.
E ainda segundo
Hobbes, se a maioria, por voto de
consentimento, escolher um soberano, os que tiverem discordado devem passar a
consentir juntamente com os restantes. Ou seja, devem aceitar e reconhecer
todos os atos que ele venha a praticar, ou então serem justamente destruídos pelos
restantes. Aquele que voluntariamente ingressou na congregação dos que
constituíam a assembléia, declarou suficientemente com esse ato sua vontade (e
portanto tacitamente fez um pacto) de se conformar ao que a maioria decidir.
Portanto, se depois recusar aceitá-la, ou protestar contra qualquer de seus
decretos, age contrariamente ao pacto, isto é, age injustamente. E quer faça
parte da congregação, quer não faça, e que seu consentimento seja pedido, quer
não seja, ou terá que submeter-se a seus decretos ou será deixado na condição
de guerra em que antes se encontrava, e na qual pode, sem injustiça, ser
destruído por qualquer um.. Dado que todo súdito é por instituição autor de
todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este
faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que
nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude
da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de
cuja autoridade está agindo.
Por esta
instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano
fizer, por consequência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu
soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não
deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio
de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os
detentores do poder soberano podem cometer iniquidades, mas não podem cometer
injustiça nem injúria em sentido próprio, e em consequência do que foi dito por
último, aquele que detém o poder soberano não pode justamente ser morto, nem de
qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos. Dado que cada súdito é
autor dos atos de seu soberano, cada um estaria castigando outrem pelos atos
cometidos por si mesmo."
A questão da
Igualdade e liberdade
Nesse Estado, em
que o poder é absoluto - perguntará o leitor - que papel caberão à liberdade e
á igualdade, estes grandes valores que aprendemos a respeitar? Ora, o que Hobbes faz é justamente
desmontar o valor retórico que atribuímos a palavras capazes de gerar tanto
entusiasmo, tanta ambição, descontentamento e guerra. A igualdade, já vimos, é
o fator que leva à guerra de todos, dizendo que os homens são iguais, Hobbes
não faz uma proclamação revolucionária contra o Antigo Regime (como fará a
Revolução Francesa: "Todos os homens nascem livres e iguais..."),
simplesmente afirma que dois ou mais homens podem querer a mesma coisa, e por
isso todos vivemos em tensa competição.
E a liberdade?
Hobbes vai defini-la de modo que também deixa de ser um valor. Liberdade significa, em
sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os
impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos ás criaturas
irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque de tudo o que estiver
amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo
espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo externo,
dizemos que não tem liberdade de ir mais além. E o mesmo se passa com todas as
criaturas vivas, quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou
cadeiras; e também das águas, quando são contidas por diques ou canais, e se
assim não fosse se espalhariam por um espaço maior, costumamos dizer que não
têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses
impedimentos externos. Mas
quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria coisa não
costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se
mover; como quando uma pedra está parada, ou um homem se encontra amarrado ao
leito pela doença. Conformemente a este significado próprio e geralmente aceito
da palavra, um homem
livre é aquele que, naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de
fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer", ou seja,
Hobbes começa reduzindo a liberdade a uma determinação física, aplicável a
qualquer corpo. Com isso ele praticamente elimina o valor (a seu ver retórico)
da liberdade como um clamor popular, como um princípio pelo qual homens lutam e
morrem. Segundo ele é coisa
fácil os homens se deixarem iludir pelo especioso nome de liberdade e, por
falta de capacidade de distinguir, tomarem por herança pessoal e direito inato
seu aquilo que é apenas direito do Estado. E quando o mesmo erro é confirmado
pela autoridade de autores reputados por seus escritos sobre o assunto, não é
de admirar que ele provoque sedições e mudanças de governo.
Resta, porém,
uma liberdade ao homem. Hobbes explica que quando o indivíduo firmou o contrato
social, renunciou ao seu direito de natureza, isto é, ao fundamento jurídico da
guerra de todos. É que, neste direito, o meio (fazer o que julgasse mais
conveniente) contradizia o fim (preservar a própria vida). O homem percebeu
que, como todos tinham esse direito tanto quanto ele, o resultado só podia ser a
guerra - "e a vida do homem [era] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e
curta". Mas, dando poderes ao soberano, a fim de instaurar a paz, o
homem só abriu mão de seu direito para proteger a sua própria vida. Se esse fim
não for atendido pelo soberano, o súdito não lhe deve mais obediência - não
porque o soberano violou algum compromisso (isso é impossível, pois o soberano
não prometeu nada), mas simplesmente porque desapareceu a razão que levava o
súdito a obedecer. Esta é a "verdadeira liberdade do súdito". Este
ponto é delicado, e devemos insistir nele. O soberano não perde a soberania se
não atende aos caprichos de cada súdito. Mas, se deixa de proteger a vida de
determinado indivíduo, este indivíduo (e só ele) não lhe deve mais sujeição. Os
outros não podem aliar-se ao desprotegido, porque o governante continua a
protegê-los. E pouco importa se o soberano fere o (ex-) súdito tendo ou não
razão (afinal, repetimos, ninguém pode julgar o soberano). O
soberano não está atado pelas leis humanas de justiça, por isso, de seu ponto
de vista, não há diferença em ele castigar um culpado ou agredir um inocente.
Já o súdito, se é súdito, é porque prometeu obedecer a fim de não morrer na
guerra generalizado; por isso, de seu ponto de vista tanto faz a sua vida ser ameaçada
por um soberano impiedoso e iníquo, quanto por um governante que o julgou
concedendo-lhe a mais ampla defesa. O que temos, em todos os casos, é o mesmo
esquema: um governante que fere e, por isso, um súdito que recupera sua
liberdade natural.
O Estado, e a
propriedade
O desconforto de
sua doutrina, em grande parte, deve-se à propriedade. A sociedade burguesa, que
no tempo de Hobbes já luta para se afirmar, estabelece a autonomia do
proprietário para fazer com seu bem o que bem entenda. Na Idade Média, a
propriedade era um direito limitado, porque havia inúmeros costumes e
obrigações que a controlavam. Por exemplo, o senhor de terras não podia impedir
o pobre de colher espigas, ou frutas, na proporção necessária para saciar a
fome. Se havia um servo ligado à gleba, nem este podia deixá-la, nem o senhor
podia expulsá-lo para dar outro uso à terra. Mas, nos tempos modernos, o
proprietário adquire o direito não só ao uso do bem e a seus frutos (que
somam-se na palavra usufruto), como também ao abuso: isto é, o direito de
alienar o bem, de destruí-lo, vendê-lo ou dá-lo. Hobbes reconhece o fim das
velhas limitações feudais à propriedade - e nisso ele está de acordo com as
classes burguesas, empenhadas em acabar com os direitos das classes populares à
terra comunal ou privada - mas, ao mesmo tempo, estabelece um limite muito
forte à pretensão burguesa de autonomia: todas as terras e bens devem ser
controladas pelo soberano.
"A
distribuição dos materiais dessa nutrição é a constituição do meu,
do teu e do seu. Isto é, numa palavra, da propriedade.
E em todas as espécies de Estado é da competência do poder soberano. Porque
onde não há Estado, conforme já se mostrou, há uma guerra perpétua de cada
homem contra seu vizinho, na qual portanto cada coisa é de quem a apanha e
conserva pela força, o que não é propriedade nem comunidade, mas
incerteza. O que é a tal ponto evidente que até Cícero (um apaixonado
defensor da liberdade), numa arenga pública, atribuiu toda propriedade às leis
civis: "Se as leis civis",, disse ele, "alguma vez forem
abandonadas, ou negligentemente conservadas (para não dizer oprimidas), não
haverá nada mais que alguém possa estar certo de receber de seus antepassados,
ou deixar a seus filhos". E também: "suprimi as leis civis, e ninguém
mais saberá o que é seu e o que é dos outros". Visto portanto que a
introdução da propriedade é um efeito do Estado, que anda pode
fazer a não ser por intermédio da pessoa que o representa, ela só pode ser um
ato do soberano, e consiste em leis que só podem ser feitas por quem tiver o
poder soberano. Bem o sabiam os antigos, que chamavam Nómos (quer
dizer, distribuição) ao que nós chamamos lei, e definiam a justiça
como a distribuição a cada um do que é seu”.
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