Pensador e
político inglês do século XVIII, Edmund Burke é considerado o fundador do
conservadorismo moderno. Tal atributo lhe foi imputado, mais, em virtude de
suas formulações teóricas nascidas de seu ataque ferrenho aos revolucionários
franceses e seus defensores na Inglaterra, o que o levou à posição de primeiro
grande crítico da Revolução Francesa de 1789, do que em função de sua brilhante
carreira como parlamentar Whig (grupo partidário liberal), defensor das
liberdades e do constitucionalismo dos ingleses. Burke não escreveu um tratado sobre teoria política;
sua obra consiste em uma série de cartas, discursos parlamentares e panfletos
de circunstância, e seu pensamento, embora altamente imaginativo, é bastante assistemático, o que tornou sua
produção sujeita a interpretações conflitantes e mesmo à acusação de
inconsistência teórica e doutrinária.
Edmund Burke
nasceu em janeiro de 1729 na cidade de Dublin, na Irlanda, à época uma colônia
inglesa. Seu pai, um advogado de confortável posição, era protestante, e sua
mãe, descendente de uma velha família católica. Burke optou pelo protestantismo
e, embora desenvolvesse uma ligação profunda com a religião, foi sempre muito
tolerante com as diferentes seitas. Isto certamente tem a ver com sua
diversificada experiência familiar e escolar. Burke teve uma excelente
educação. Burke vai para Londres com a intenção de se preparar para a carreira
de advogado, matriculando-se assim num curso de direito no Middle Temple.
Embora tenha inicialmente se dedicado com afinco ao estudo da jurisprudência,
logo se viu atraído pela literatura, o que o fez abandonar seus estudos de
direito.
Seu primeiro
contato direto com a política se deu através de William Gerard Hamilton, um
parlamentar que em 1761 foi nomeado primeiro-secretário do governador da
Irlanda e que convidou Burke para acompanhá-lo como secretário particular. Esta
experiência junto à administração inglesa na Irlanda fez com que entrasse a
fundo nos problemas de sua terra natal, tornando-se um incansável defensor das
causas irlandesas. Permaneceu na Irlanda até 1765, data em que rompeu com
Hamilton e em que foi nomeado secretário do marquês de Rockingham, líder de um
dos grupos Whig no Parlamento (Liberal). Como seu secretário durante dezessete
anos, Burke participou dos governos liderados por Lord Rockingham, e exerceu
grande influência neste que era o líder da principal corrente política inglesa,
o partido Whig de Rockingham. Assim, não foi difícil para Burke conseguir,
através de eleições de limitada participação como as que ocorriam na época, um
assento no Parlamento. Sua entrada na Câmara dos Comuns se dá em 1766 como
deputado por Wendover, cadeira que iria conservar até 1774, quando a trocou
pela deputação por Bristol. Foi nesta cidade - então a segunda do reinado -
que, ao ser proclamado eleito em 3 de novembro de 1774, Burke pronunciou o
famoso discurso, tratando do papel de um representante no Parlamento. Neste
discurso Burke defende com brilhantismo a independência da atividade de um
representante. Este, ao invés de se guiar por instruções de seus representados,
deveria se orientar pelo bem geral de toda a comunidade e agir de acordo com
seu próprio julgamento e consciência.
Burke permaneceu
como representante de Bristol até 1780, quando, reconhecendo ter perdido a
confiança de seus representados, decidiu-se por assegurar um lugar no
Parlamento através da representação do distrito de Malton, cadeira que
conservou até encerrar sua carreira parlamentar em 1794. Burke morreu em 9 de
julho de 1797.
Uma sociedade
natural, hierárquica e desigual
É uma tarefa
demasiado árdua discutir em uma breve apresentação os vários e intrincados
aspectos envolvidos no pensamento de Burke, principalmente por se tratar de um
pensador e político que nunca chegou - nem mesmo nas Reflexões - a expor de
modo sistemático suas idéias fundamentais. Estas, ao contrário, emergem em meio a críticas e
argumentos construídos na discussão acerca de questões concretas. Sua despreocupação com a
sistematização de seu pensamento muito se deve ao fato de esposar uma visão
hostil às abstrações. Para Burke, as concepções teóricas, sem contato com a
realidade, muitas vezes obstruem ou corrompem a ação política, por não levar em
consideração as circunstâncias complexas em que os problemas estão envolvidos:
"São as circunstâncias que fazem com que qualquer plano político ou civil
seja benéfico ou prejudicial para a humanidade". Desse modo, princípios
abstratos não podem ser simplesmente aplicados na solução de problemas
políticos reais. De fato,
foi essa a primeira grande objeção de Burke à Revolução Francesa, um movimento
motivado por princípios abstratos como a liberdade, a igualdade. Isso não significa, no entanto, que
Burke tenha evitado fazer generalizações teóricas. E, apesar de suas constantes
referências pouco elogiosas ao pensamento abstrato, suas críticas às ideias
revolucionárias, bem como as posições fundamentais que defendia, não deixavam
de possuir fundamentos metafísicos. Burke
admitia existir, subjacente ao fluxo dos eventos, uma realidade superior, sendo
essencial para qualquer ação o seu conhecimento. E, de fato, sua concepção
sobre o Estado e a sociedade baseia-se em determinadas suposições sobre a
natureza do Universo. A esse respeito, cabe ressaltar o papel proeminente da
religião no esquema explicativo de Burke. Estado
e sociedade fazem parte da ordem natural do Universo, que é uma criação divina.
Segundo Burke, Deus criou um Universo ordenado, governado por leis eternas. Os
homens são parte da natureza e estão sujeitos às suas leis. Estas leis eternas criam suas
convenções e o imperativo de respeitá-las; regulam a dominação do homem pelo
homem e controlam os direitos e obrigações dos governantes e governados. Os homens, por sua vez,
dependem uns dos outros, e sua ação criativa e produtiva se desenvolve através
da cooperação. Esta requer a definição de regras e a confiança mútua, o que é
desenvolvido pelos homens, com o passar do tempo, através da interação, da
acomodação mútua e da adaptação ao meio em que vivem. É desse modo que eles
criam os princípios comuns que formam a base de uma sociedade estável.
Alguns pontos
podem assim ser assinalados quanto à concepção de Burke acerca da natureza da
sociedade e do Estado. Em
primeiro lugar, a sociedade tem uma essência moral, um sistema de mútuas
expectativas, deveres e direitos sociais (e não naturais). Em segundo lugar,
vemos em Burke a idéia de que a sociedade é natural e de que os homens são por
natureza sociais ("o estado de sociedade civil [...] é um estado de
natureza"). E aqui cabe frisar que, para Burke, faz também parte da
natureza das coisas a desigualdade (e a propriedade, que tem por traço
fundamental ser desigual). A natureza é hierárquica; assim, uma sociedade
ordenada é naturalmente dividida em estratos ou classes, de modo que a
igualdade, tanto política, social como econômica, vai contra a natureza.
Para Burke, a idéia de igualdade, esta "monstruosa ficção" apregoada
pela Revolução Francesa, só serve para subverter a ordem e "para agravar e
tornar mais amarga a desigualdade real que nunca pode ser eliminada e que a
ordem da vida civil estabelece, tanto para benefício dos que têm de viver em
uma condição humilde" como dos privilegiados.
Em terceiro
lugar, tem-se a idéia de que a sociedade näo apenas tem origem divina mas
também é divinamente ordenada. Segundo Burke, Deus nos legou o Estado, que é o
meio necessário pelo qual nossa natureza é aperfeiçoada pela nossa virtude.
Nesse sentido, a sociedade e o Estado possibilitam a realização das
potencialidades humanas. Pode-se
identificar em Burke uma atitude de veneração ao Estado (especificamente ao
Estado inglês), bastante similar à que teria mais tarde Hegel em relação ao
Estado prussiano. Como afirma
Burke, o Estado é "uma associação de toda ciência, de toda arte, de toda
virtude e de toda perfeição [...] uma associação não apenas entre os vivos, mas
também entre os mortos e os que irão nascer". E isso nos leva a fazer alusão a um
outro traço importante do pensamento de Burke: sua defesa da continuidade, sua
reverência à tradição social e constitucional.
Uma constante no
pensamento político de Burke, aparente tanto quando ele criticava o governo
autocrático e a política colonial da Coroa como quando vilipendiava a Revolução
Francesa, é a defesa da Constituição inglesa. Muito do seu sentido de
conservação está referido ao que esta Constituição, a seu ver, representava ou
personificava. Em primeiro lugar, ela representava o pacto voluntário pelo qual
uma sociedade é criada; e por se basear em um contrato voluntário inicial, ela
é um imperativo para todos os indivíduos de uma sociedade. Em segundo lugar, a
Constituição inglesa personificava a tradição, e por isso deveria ser
respeitada, porque esta representa a "progressiva experiência" do
homem. Afirma Burke:
"Nossa
Constituição é uma Constituição prescritiva; é uma Constituição cuja única
autoridade consiste no fato de ter existido desde tempos imemoráveis". E
as velhas instituições são as mais úteis, porque elas têm a sabedoria de Deus
trabalhando através da experiência dos homens no curso de sua história.”
Em terceiro
lugar, defender a Constituição inglesa significava defender o arranjo político
instaurado a partir da Revolução de 1688, que garantia o equilíbrio entre a
Coroa e o Parlamento. Este arranjo político consagrava à monarquia a condição
de instituição central da ordem política, ao personificar o objeto
"natural" de obediência e reverência; mas atribuía ao Parlamento –
corpo representativo dos diferentes interesses do reino - a condição de
contrapeso da instituição monárquica, possibilitando o necessário controle sobre
os abusos do poder real. Afirma Burke:
"A virtude,
o espírito e a essência da Câmara dos Comuns consiste em ser ela a imagem
expressa dos sentimentos da nação. Ela não foi instituída para ser um controle
sobre o povo.”
Assim, tem uma
posição-chave nesse arranjo constitucional a Câmara dos Comuns, através da qual
o povo está representado, no entanto, o
caráter representativo desta Câmara é para Burke muito mais virtual do que
real, e tem pouco a ver com base eleitoral, mesmo porque Burke se opunha à
extensão do sufrágio. Segundo Burke, os interesses têm uma realidade objetiva e
são o fruto de debate e deliberação entre homens de sabedoria e de virtude, não
se confundindo com os meros desejos e opiniões do povo. É nesse sentido que Burke defendia o
mandato independente na atividade de um representante. Como argumenta em seu
famoso discurso aos eleitores de Bristol,
"O Parlamento é uma assembléia deliberante de uma nação, com um único interesse, o
de todos; onde não deveriam influir fins e preconceitos locais, mas o bem comum
[...]". É portanto um direito e um dever dos membros do Parlamento seguir
sua própria consciência e julgamento independente, ao invés de obedecer aos
desejos ou instruções de sua base.”
Finalmente cabe
ressaltar a importância assinalada por Burke aos partidos políticos, peça
essencial de um governo livre. Na
verdade, Burke foi quem primeiro atribuiu um significado positivo ao termo
partido político, dissociando-o do caráter faccioso originalmente atribuído aos
agrupamentos políticos. Sua defesa dos partidos políticos é uma reação à idéia,
difundida pela camarilha do rei, de que toda conexão que persegue um fim
político é necessariamente uma facção que visa somente vantagens pessoais e
antipatrióticas. Contrapondo-se a essa ideia, Burke formulou a definição
clássica de partido político:
"Um
grupo de homens unidos para a promoção, através de seu esforço conjunto, do
interesse nacional, com base em algum princípio determinado com o qual todos
concordam, os partidos são instrumentos necessários para que planos comuns
possam ser postos em praticas “com todo o poder e autoridade do Estado”.
Concebendo a
sociedade como um organismo que encarnava a ordem moral de origem divina; fiel
defensor da hierarquia social, das prescrições, dos direitos herdados e da
continuidade histórica; critico ferrenho das ideias e praticas da Revolução
Francessa; Burke por estes e outros atributos, tornou-se o exponente máximo do
pensamento conservador. Conhecer suas
ideias ajuda-nos a entender os fundamentos em que esta baseada a critica
conservadora a concepção dialética da historia, a teoria da revolução, ao
radicalismo politico. Mas
Burke foi também um vigoroso inimigo da camarilha do rei Jorge III, critico
contumaz do governo autocrático e do imperialismo britânico em sua forma
vigente na América, Irlanda e índia no Século XVIII; defensor de uma economia de
mercado, de tolerância religiosa e dos princípios liberais da revolução Whig de
1688. Tais tributos é que deram a Burke o titulo de constitucionalista liberal.
Um liberal conservador, esta seria a melhor denominação para Burke; e discutir
sua concepção sobre representação politica, sobre partidos e governos
partidários, ajuda-nos a conhecer os mecanismos caraterísticos de um regime
parlamentar.
Independência
americana e revolução francesa
Durante todo o
período que vai de 1766 a 1794, Burke foi um atuante membro do Parlamento e,
como tal, esteve presente nos principais acontecimentos políticos da Inglaterra
dos meados do século XVIII. Referir-se
a esta época e a este lugar é situarmo-nos em um período histórico em que já
despontavam na Inglaterra sinais do grande surto econômico provocado pela
Revolução Industrial; significa, também, colocarmo-nos em um país onde há quase
um século ocorrera a derrocada da monarquia absolutista, e onde a ordem
capitalista já se tornara parte do status quo, instaurada como foi na
Inglaterra por um processo de acomodação progressiva do novo na velha ordem
tradicional.
Num contexto
mais específico, a época em
que Burke iniciou sua carreira política coincide com um evento que iria ter
consequências significativas na política britânica: a ascensão de Jorge III ao
trono da Inglaterra. Tornando-se rei em 1760, Jorge III iria tentar de todas as
formas assegurar um papel mais ativo para a Coroa, a qual, desde a Revolução
Gloriosa de 1688, havia perdido influência em benefício do fortalecimento do
Parlamento. Assim, os primeiros 35 anos do reinado de Jorge III foram
marcados pela ação deliberada do rei com vistas a reverter, a qualquer custo, a
tendência prevalecente nas décadas anteriores, de modo a reconquistar para a
Coroa o poder efetivo. E, nesta luta, Edmund Burke se colocou ao lado do
Parlamento, defendendo o regime parlamentar e a ordem constitucional inglesa.
Fazendo uma análise da situação política da época, Burke argumentava no sentido de
mostrar que as ações de Jorge III chocavam-se com o espírito da Constituição; e
denunciava como prática de favoritismo o critério pessoal na escolha dos
ministros. Combatendo a camarilha do rei, Burke defendia a escolha dos membros
do ministério segundo bases públicas, isto é, através da aprovação do
Parlamento, que representa a soberania popular. É neste ensaio que encontramos,
pela primeira vez expressa de forma inequívoca, uma defesa dos partidos
políticos como instrumentos de ação conjunta na vida pública.
Foi também no
tempo de Burke que se acirrou o conflito do Império britânico com as
colônias americanas, culminando na guerra da independência. O desenvolvimento prodigioso das
colônias da América no século XVIII havia gerado tensões no sistema de
regulação política e econômica imperial, e a determinação da Coroa de manter o
controle absoluto sobre os povos colonizados resultou em repressão e guerra.
Defensor de uma política mais conciliatória, seus pronunciamentos mais
conhecidos sobre esta questão e a carta enviada à sua base eleitoral
justificando sua posição em defesa dos americanos, Letter to the sheriffs of
Bristol (1777). Em seus pronunciamentos, Burke defendia a necessidade de se
encontrar uma solução harmônica para o problema daqueles que, em verdade, eram
descendentes dos ingleses e que, como estes, possuíam o espírito de liberdade
que tão bem encarnavam as instituições britânicas; argumentava que estava em
risco não apenas as liberdades dos americanos mas as próprias liberdades dos
ingleses.
Se foi em nome
dessas liberdades que Burke se insurgiu contra as investidas da Coroa em tentar
aumentar seu poderio interna e externamente, foi em nome da ordem e das
tradições inglesas que Burke iniciaria uma cruzada contra o acontecimento
histórico mais surpreendente de sua época, a Revoluçäo Francesa de 1789. Sua
hostilidade desmesurada a este movimento revolucionário sem precedentes, que
causara entusiasmo entre os ingleses, inspirou-lhe a produção de sua mais importante
obra: Reflexões sobre a revolução em França, publicada em 1790. Esta obra foi
motivada por um pronunciamento do dissidente protestante Richard Price, que,
elogiando a Revolução Francesa, elegia-a como modelo aos britânicos.
Assim é que
grande parte desta obra tem por fim dinamitar os argumentos dos defensores na
Inglaterra daquelas idéias radicais que impulsionaram a Revolução na França, as
quais Burke temia que fossem generalizadas. Desta
maneira, Burke discute as ideias fundamentais que animaram o movimento, tais
como a questão da igualdade, dos direitos do homem e da soberania popular;
alerta contra os perigos da democracia em abstrato e da mera regra do número; e
questiona o caráter racionalista e idealista do movimento, salientando não se
tratar simplesmente do fato de estar a revolução provocando o desmoronamento da
velha ordem, mas de estar causando a deslegitimaçäo dos valores tradicionais,
destruindo assim toda uma herança em recursos materiais e espirituais
arduamente conquistada pela sociedade. Contrapondo-se
a esses males, Burke exalta as virtudes da Constituição inglesa, repositório do
espírito de continuidade, da sabedoria tradicional, da prescrição, da aceitação
de uma hierarquia social e da propriedade, e da consagração religiosa da autoridade
secular. É particularmente nesta obra que se encontram expostos de forma mais
clara os fundamentos e traços conservadores do pensamento de Burke.
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