Ponderado: um pouco de cada. |
Falar de Tocqueville é falar da questão da liberdade e da igualdade e suas problemáticas, e por isso, segundo suas ideias, é necessário falar de democracia. Sem dúvida, os temas abordado por Tocqueville são temas herdado do jusnaturalismo e do contratualismo. Entretanto, a críticas constantes realizada por pensadores no século XIX, ao jusnaturalismo e contratualismo, leva-os a considerar tais temas como simples abstrações generalizantes. Tocqueville não escapa a essa moda de criticar, pois é dessa forma (como sendo abstrações generalizantes) que ele vai se referir às idéias de Rousseau e da filosofia política do século XVIII. Mas em Tocqueville o tema persiste, aliás, é para ele o ponto central do que poderia ser uma nova ciência política. Também é através da discussão da questão da liberdade e da igualdade que vai procurar explicar o desenvolvimento sociopolítico das várias realidades por ele estudadas.
Tocqueville trabalha com a
especificidade de realidades politicas diferentes de sua época. Considerando
tanto a história política e social de cada uma quanto as várias contradições do
presente, tentando por vezes até realizar prognósticos para o futuro sobre as
mesmas. Seria interessante lembrar aqui uma de suas previsões mais citadas no
mundo contemporâneo:
Há hoje no mundo dois grandes
povos que, tendo partido de pontos diferentes, parecem avançar para o mesmo
fim: esses são os russos e os americanos... Seu ponto de partida é diferente,
seus caminhos são diferentes; no entanto, cada um deles parece convocado, por
um desígnio secreto da Providência, a deter nas mãos, um dia, os destinos da
metade do mundo.
Democracia: um processo universal
Seus estudos dizem respeito a
realidades concretas que abrangem desde a descrição de hábitos e costumes de um
povo e sua organização social até a explicação de sua estrutura de dominação,
de suas instituições políticas e das relações do Estado com a sociedade civil. A preocupação fundamental é claramente
expressa através de interpretações sociopolíticas, quando busca encontrar a
possível coexistência harmônica entre um processo de desenvolvimento
igualitário e a manutenção da liberdade. Tocqueville enfrenta assim, agora
porém no nível das realidades concretas, o desafio lançado pelos
contratualistas clássicos, ao tratarem a questão da liberdade e da igualdade
como categorias não contraditórias de um mesmo todo.
Sua
questão central será sempre: o que fazer para que o desenvolvimento da
igualdade irrefreável não seja inibidor da liberdade, podendo por isso vir a
destruí-la? Assim, com o eventual desenvolvimento de suas
ideias fica evidente que abordar, portanto, a questão da liberdade e da
igualdade, em Tocqueville, é para ele, fundamental falar de democracia.
Em
primeiro lugar porque Tocqueville identifica, igualdade com democracia, em
segundo lugar porque ao não trabalhar apenas com indagações abstratas procura
entender a questão da liberdade e da igualdade, onde, acredita, elas não foram
contraditórias. Isto é, onde um processo de igualização crescente se dava ao
mesmo tempo em que preservava a liberdade, melhor dizendo, onde a democracia se
realizava com liberdade. Para ele, isso estava acontecendo nos Estados
Unidos da América, por volta de 1830.
Entretanto, Tocqueville afirma
também que não está querendo apenas descrever a democracia americana, mas
pretende, ao pesquisar a vida sociopolítica nos Estados Unidos, obter um
conhecimento tão amplo do fenômeno democrático de tal forma que possa chegar a
construir um conceito definidor de democracia. Tenderíamos também a concordar
com a tese de que estaria antecipando a metodologia de Max Weber, ao tentar
construir um "tipo ideal" de democracia. A maneira pela qual retira
da realidade pesquisada fatos que lhe parecem significativos para a compreensão
do fenômeno democrático, o cuidado com que os relaciona, buscando aí encontrar
a racionalidade que lhes é específica, permite que se veja no seu estudo mais
do que a democracia, tal como ela ocorria nos Estados Unidos, ou que pudesse
vir a ocorrer na França. Como declara em carta a John Stuart Mill:
"Partindo de noções que me forneciam as
sociedades americana e francesa, eu quis pintar os traços gerais das sociedades
democráticas, das quais não existe ainda nenhum modelo completo".
Ao
elaborar esse conceito de democracia,(colocando de modo que a liberdade não se
oponha a igualdade) Tocqueville acaba por apresentá-la como um processo de
caráter universal, ou seja, democracia não seria um fenômeno que apenas
surgiu e se desenvolveu nos Estados Unidos. Embora as condições nesse
país tenham sido excepcionais para o seu desenvolvimento, o processo
democrático, que ele define como um constante aumento da igualdade de
condições, diz respeito a toda a humanidade. Como tal, a democracia é vista
como inevitável e mesmo providencial, pois ela seria a própria vontade divina,
realizando-se na história da humanidade. Assim, ela, segundo suas próprias palavras:
"é universal, durável e todos os
acontecimentos, como todos os homens, servem ao seu desenvolvimento. Querer
parar a democracia pareceria então lutar contra Deus".
Esse é, portanto, o eixo
fundamental para se entender o significado de democracia para Tocqueville: a
existência de seu processo igualitário, como se fosse uma lei necessária para
se compreender a história da humanidade.
No entanto, apesar do seu conceito
de democracia ter sido construído a partir principalmente da realidade
sociopolítica americana e Tocqueville considerar que era nos Estados Unidos que
o processo democrático apresentava-se mais desenvolvido, isto não quer dizer
que neste país a democracia já esteja plenamente realizada ou que o processo
igualitário se repetirá da mesma forma, vindo a cumprir as mesmas etapas em
outros lugares. Pelo contrário, para
ele, cada país, cada nação terá seu próprio desenvolvimento democrático. Porém,
sem dúvida, todas caminharão para uma situação cada vez mais ampla de igualdade
de condições. Nessa diversidade de caminhos que as nações podem percorrer para
a realização da democracia, o fator mais importante para defini-los é a ação
política do seu povo.
Os perigosos desvios da igualdade
Uma das críticas mais correntes ao
pensamento de Tocqueville diz respeito ao fato de que a democracia americana
dessa época não só apresentava grandes diferenças de nível econômico entre seus
habitantes, mas também diferenças raciais e culturais. Em suas explicações sobre o que definia como igualdade de condições,
fica bem claro que está excluída a possibilidade de se compreender como tal
apenas a igualdade econômica. É, no entanto, na igualdade cultural e política
que está assentada sua idéia de que, no desenvolvimento do processo
democrático, um povo tornar-se-á cada vez mais homogêneo.
Nos Estados Unidos, aliás, o grande
problema por ele apontado para que o processo democrático pudesse se cumprir
plenamente, era a existência de escravos. Sobretudo porque, por serem de raça
diferente, a cor iria, mesmo após a libertação, permanecer como um fator de
diferenciação e preconceito.
Tocqueville
fala também em fator gerador de igualdade, entendendo por isto todo e
qualquer elemento cultural que permita aos indivíduos considerarem-se como
iguais. Assim, por exemplo, a expressão de uma idéia, um princípio, ou uma
crença de que os homens são iguais permite desencadear o processo igualitário e
também garante seu desenvolvimento. Isso é igualmente válido para uma lei que
declare que os homens são iguais, ou para qualquer fenômeno igualitário que se
realize num nível mais concreto. Assim sendo, democracia para Tocqueville está
sempre associada a um processo igualitário que não poderá ser sustado,
desenvolvendo-se também diversamente em diferentes povos, conforme suas
variações culturais. Porém, será sobretudo a açäo política desse povo
que irá definir se essa democracia será liberal ou tirânica.
Essa questão da possibilidade da
democracia vir a ser uma tirania é a principal preocupação de Tocqueville,
aparecendo claramente expressa em todas as suas obras, sendo também
constantemente manifestada em sua atividade política. Pois, para ele, o processo
de igualização crescente pode envolver desvios perigosos, que levem à perda da
liberdade. Para evitá-los, é preciso conhecê-los e apontá-los, o que deve ser
feito estudando-se a democracia e tendo-se uma ação política constante em
defesa da liberdade.
Tocqueville vê no desenvolvimento
democrático dos povos dois grandes perigos possíveis de acontecer: o primeiro seria o aparecimento de uma
sociedade de massa, permitindo que se realizasse uma Tirania da Maioria; o
segundo seria o surgimento de um Estado autoritário-despótico. No primeiro
caso, o seu temor é que a cultura igualitária de uma maioria destrua as
possibilidades de manifestação de minorias ou mesmo de indivíduos
diferenciados. O desenvolvimento, portanto, de uma sociedade onde hábitos, valores
etc., fossem de tal forma definidos por uma maioria que quaisquer atividades ou
manifestação de idéias que escapassem ao que a massa da população acreditasse
ser a normalidade, seriam impedidas de se realizar. É o que ele define, da
mesma forma que Edmund Burke, como Tirania da Maioria. Tocqueville está
sobretudo preocupado com a possibilidade de que nas democracias, as artes, a
filosofia e mesmo as ciências sem imediata aplicação prática não encontrem
campo para se desenvolver.
Todavia, curiosamente, investe
também contra o individualismo, que chama de pernicioso. Individualismo que,
para ele, é criado e alimentado pelo desenvolvimento do industrialismo
capitalista, onde o interesse mais alto é o lucro, a riqueza. Pregando francamente a favor de uma moralidade
que se confunda com a política, Tocqueville procura demonstrar que os cidadãos,
à medida que se dedicam cada vez mais aos seus afazeres enriquecedores, vão
concomitantemente abandonando seu interesse pelas coisas públicas. Dessa forma,
acabam por facilmente deixar-se conduzir. Isto é, terminam por possibilitar,
nesse descaso pelas atividades políticas, o estabelecimento de um Estado que
aos poucos tomará para si todas as atividades. Esse Estado começará por decidir
sozinho sobre todo assunto público, mas aos poucos irá também intervir nas
liberdades fundamentais. É assim que ele vê, no seio da democracia, surgir o
germe de um Estado autoritário e mesmo tirânico ou despótico. Em suma
Tocquevile não esta contra o individualismo em si, mas nos efeitos que esta
ação acarretara, possivelmente culminando em um Estado despótico.
Ação politica e
instituições políticas
Contudo, apesar de esses perigos
aparecerem como as piores ameaças para o desenvolvimento da democracia no mundo
moderno, Tocqueville procura mostrar como eles podem ser evitados. Se, por um
lado, a atividade política dos cidadãos, aliás a mais importante, pode impedir
que tais fenômenos ocorram, por outro, a existência e a manutenção de certas
instituições podem dificultar bastante o surgimento de um Estado autoritário e
mesmo de uma sociedade massificada.
Sem dúvida, a fraqueza do exercício
da cidadania permite que se aceite mais facilmente o desenvolvimento da
centralização administrativa, o que normalmente leva à maior concentração de
poder do Estado. Assim, se a cidadania
que não se ocupa de coisas públicas se aliar a um crescente aumento do poder do
Estado, chegar-se-á facilmente a um Estado despótico. Um Estado que comandará
um povo massificado, apenas preocupado com suas pequenas atividades
particulares de caráter enriquecedor para os mais abastados ou apenas de
sobrevivência para os mais pobres.
Mas
a existência de instituições que desenvolvam a descentralização administrativa
ou que levem os cidadãos a se associarem para defender os seus direitos obriga
de alguma forma a maior participação por parte dos nacionais. Igualmente a
permanência de uma Constituição e de leis que possam garantir a manutenção das
liberdades fundamentais ajuda a convivência do processo igualitário com a
liberdade. Isto é, a democracia não precisa apenas ser igualitária, ela pode
permitir aos homens serem livres. Pode-se mesmo, conforme
Tocqueville, "imaginar um ponto extremo onde liberdade e igualdade se
toquem e se confundam", pois é na própria democracia que encontramos a
solução para os seus males. Ainda citando Tocqueville:
“É a própria igualdade que torna os homens
independentes uns dos outros, que os faz contrair o hábito e o gosto de seguir
apenas a sua vontade em suas ações particulares, e esta inteira independência
de que gozam, em relação a seus iguais, os predispõe a considerar com descontentamento
toda autoridade e lhes sugere logo a idéia e,o amor da liberdade política.”
Portanto, embora as instituições de
caráter liberal possam ajudar a manutenção das liberdades fundamentais, é na
ação política dos cidadãos que está posta a garantia de sua real existência na
democracia.
Diferente
da igualdade, que nada impede de ir se realizando na história da humanidade, a
liberdade, para Tocqueville, é extremamente frágil e por isso mesmo precisa ser
querida, protegida e é mesmo necessário lutar por ela para que não se venha
perdê-la. Em nenhum momento pode-se abandonar a defesa da liberdade.
"Para viver livre é necessário
habituar-se a uma existência plena de agitação, de movimento, de perigo; velar
sem cessar e lançar a todo momento um olhar inquieto em torno de si: este é o
preço da liberdade."
Esta visão da idéia de liberdade,
apresentada por Tocqueville e sem dúvida inspirada na famosa frase de Thomas
Jefferson: "O preço da liberdade é a eterna vigilância",
demonstra bem como a necessidade de uma prática política constante era condição
primeira para que a liberdade fosse preservada.
Para Tocqueville, embora seja
necessário que se anuncie a liberdade como um direito, que se a formalize ou
institucionalize através de leis e instituições, essas medidas sozinhas não
seriam suficientes para que se garantisse a liberdade. Isso porque o verdadeiro
sustentáculo da liberdade está posto na ação política dos cidadãos e na sua
participação nos negócios públicos. O que pode, evidentemente, ser incentivado
através da implantação de instituições tais como a descentralização
administrativa, a organização de associações políticas que tenham como
finalidade a defesa da cidadania ou mesmo a existência de grandes partidos.
Enfim, é sem dúvida de máxima importância que se possa criar e desenvolver
organizações livres que garantam a manutenção do espaço da palavra e da ação.
O
grande drama tocquevilliano é, portanto, buscar a solução sobre a questão da
preservação da liberdade na igualdade. Pois, por um lado, o processo
igualitário é inevitável e apresenta perigos constantes de ameaça à liberdade,
por outro, a liberdade, mesmo a que já tenha sido conquistada, é frágil e a
qualquer momento pode ser destruída. Considerando-se ainda que, para
ele, a igualdade sem liberdade é insuportável, suas obras, tanto quanto suas
atividades políticas, são uma luta constante para que a democracia, sobretudo a
francesa, fosse construída preservando-se a liberdade.
Um manifesto liberal
Sua visão da política passa
necessariamente pelo dilema democrático da harmonia da igualdade com a
liberdade e por acreditar firmemente que a solução só se dá na medida em que os
cidadãos têm de estar sempre alerta e ativos na defesa da liberdade.
Suas atividades políticas, desde
que se elege como deputado pela primeira vez, em 1839, são extremamente
coerentes com suas idéias. Como representante no Congresso, ou como
constituinte em 1848, procura sempre defender posições que pudessem favorecer a
liberdade dos cidadãos e a grandeza da nação francesa, que julga necessária
para que essa liberdade possa ser garantida. Assim, defende o ensino livre, a
liberdade de imprensa, a descentralização, a libertação dos escravos nas
colônias etc.
Mas, a coerência de suas idéias e
suas análises da realidade apontam-lhe como é preciso que a França mantenha a
conquista da Argélia, necessária estrategicamente para sua grandeza e
independência. Pois não se pode ser cidadão livre em país dominado ou muito
fraco. Também, combate os vários
socialismos que despontavam, por vê-los como difusores de idéias políticas onde
a preocupação com o igualitarismo está presente, mas não a defesa da liberdade.
Sobretudo, porque ele via nas posições socialistas uma defesa do aumento do
poder do Estado. Portanto sua condenação do socialismo parte dessa visão de
que, para os socialistas, um Estado intervencionista agigantado deveria ser o
único responsável pela direção política da nação. Isso significa, para
Tocqueville, a criação de um Estado despótico, no qual a liberdade dos cidadãos
desaparecerá.
Sua esperança de que a França
pudesse construir uma democracia com liberdade não o abandona, mesmo durante a
Revoluçäo de 48. Como constituinte eleito, procura discutir todos os grandes
temas que possam, no equilíbrio entre os poderes do Estado e os direitos da
cidadania, privilegiar os primeiros somente quando os considera absolutamente
necessários para a garantia das liberdades fundamentais. Assim é que defende a
educação como obrigatória, e o Estado, neste caso, deverá garantir que assim possa
ser. Mas o ensino deve ser livre, o Estado não deve intervir na maneira pela
qual as diferentes escolas decidem sobre seus ensinamentos.
O
único problema de Tocqueville é que nem todos os países culminarão em uma
democracia perfeita e ideal, e nem as pessoas são iguais, nem economicamente e
nem culturalmente, apesar de ter feito pesquisas empíricas para chegar a essa
conclusão, seu trabalho como teoria, no final seque uma epistemologia
propriamente metafisica.
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