Kant: A liberdade, o individuo e a moral. |
Conta-se que as donas de casa de
Königsberg, na Prússia, acertavam seus relógios pela passagem de Kant pelas
ruas. Verdade ou não, a anedota descreve o homem. Em sua longa vida, Kant
jamais quebrou a rotina do seu trabalho como professor da universidade local, e
jamais afastou-se da sua pequena cidade, onde nasceu em 1724 e onde morreu,
solteiro, aos 79 anos. Não há, pois, muito o que dizer sobre a vida do filósofo.
Costuma-se fazer referência à sua origem modesta - seu pai era seleiro - e ao
ambiente de tranqüila austeridade e disciplina do protestantismo pietista, no
qual foi educado. Desde cedo aprendeu a desdenhar a dogmática religiosa e a
cultivar a integridade pessoal como norma suprema de conduta. É bem possível
que esses primeiros anos tenham-no influenciado na vida e na obra. Sua vida foi
regrada e uniforme. Sua filosofia moral é uma celebração da dignidade
individual.
A filosofia da moral e a dignidade do individuo.
O
conhecimento racional, diz Kant, versa sobre objetos ou sobre suas próprias
leis. Há dois gêneros de
objetos: a natureza, que é o objeto da
física, (mundo empírico) e a liberdade, que
é o objeto da filosofia moral ou ética. (mundo ideal, no qual, segundo Kant, é
tangível a partir da razão). O
conhecimento das leis da própria razão, por sua vez, constitui a lógica; esse conhecimento é puramente formal, isto
é, independente da experiência.
A
física e a ética lidam com o mundo objetivo. Mas o conhecimento empírico nesses
dois grandes ramos da filosofia tem seu fundamento em corpos de princípios
puros, que a razão estabelece previamente a qualquer experiência; esses
princípios, definidos a priori, são a condição de possibilidade de qualquer
experiência racional (princípios, no quais, antecedem o mundo empírico, e so a
partir deles é possível fundamentar o mundo empírico). À ciência desses
princípios Kant denomina metafisica.
O princípio segundo o qual
"todo evento tem uma causa", por exemplo, não pode ser provado
(embora possa ser confirmado) pela experiência; mas, sem ele, a experiência da
natureza, e portanto a ciência da física, seria impossível. Da mesma
forma, a metafísica da moral estabelece que, embora não seja possível provar
que o ser humano, enquanto ser racional, é livre, porém sem a idéia de
liberdade, a experiência e o conhecimento do mundo moral seriam impossíveis.
A
metafísica da moral, como filosofia moral pura, é dividida em duas partes. A
primeira diz respeito à justiça; a segunda, à virtude. Ambas tratam das leis da
liberdade, por oposição às leis da natureza; A legalidade, por exemplo,
as leis coercitivas de uma sociedade, se distingue da moralidade pelo tipo de
motivo pelo qual as normas são cumpridas. A
mera conformidade da ação à norma caracteriza a legalidade; para que a ação
seja moral, é preciso que a ação se realize pelo dever. As leis jurídicas
são externas ao indivíduo e podem coagi-lo ao seu cumprimento (imposta pelo
Estado, por isso externa, a moralidade é um lei interna ao individuo e
universal). As leis morais, tornando obrigatórias certas ações, fazem ao
mesmo tempo da obrigação o móbil do seu cumprimento.
O binômio
interioridade/exterioridade, próprio do jusnaturalismo e da ilustração implica,
no plano político, a delimitação do poder público e a afirmação vigorosa do
indivíduo face a ele. Trata-se de
eliminar do pensamento jurídico a exigência de conformidade interna às leis do
Estado, e de definir a esfera inviolável da consciência individual, por meio da
moralidade. "A chave da filosofia moral e política de Kant", escreveu
um comentador, "é a sua concepção da dignidade do indivíduo". A
dignidade (valor intrínseco, sem equivalente ou preço) do homem está em que,
como ser racional, não obedece senão às leis que ele próprio estabeleceu. O
homem "é fim de si mesmo". Tal é o fundamento do seu direito inato à
liberdade, e de todos os demais direitos políticos, bem como, em última
análise, dos imperativos morais da república e da paz.
Toda
a filosofia kantiana do direito, da política e da história repousa sobre essa
concepção dos homens como seres morais: eles devem organizar-se segundo o
direito, adotar a forma republicana de governo e estabelecer a paz
internacional, porque tais são comandos a priori da razão, e não porque sejam
úteis. Cabe, portanto, neste ponto, uma breve referência à doutrina do
imperativo categórico, que é a pedra angular de todo o edifício da filosofia
moral de Kant.
O imperativo categórico
A
norma moral tem a forma de um imperativo categórico. O comando
nela contido assinala a relação entre um dever ser que a razão define
objetivamente; O comando moral é
categórico porque as ações a ele conformes são objetivamente necessárias,
independentemente da sua finalidade material ou substantiva particular.
Nisso reside sua diferença com
respeito aos imperativos hipotéticos, que definem a necessidade de uma certa
ação para a consecução de um objetivo desejado pelo indivíduo. A necessidade
objetiva do comando categórico faz referência a que o dever moral vale para
todos os homens enquanto seres racionais; o móbil, ou princípio subjetivo da
ação, que pode variar segundo a situação ou o indivíduo, no qual não é possível
determina o valor moral da ação.
A
conduta moral, portanto, é vinculada a uma norma universal. O critério para a
definição da boa conduta é formal: a moralidade da ação consiste precisamente
na sua universalidade segundo a razão (que implica a desejabilidade da sua
universalização). Assim se compreende a fórmula kantiana da Lei
Universal, ou imperativo categórico: "Aja
sempre em conformidade com o princípio subjetivo, tal que, para você, ele deva
ao mesmo tempo transformar-se em lei universal" (desde que guiado pelo
principio universal da razão). Os motivos materiais de nossas ações serão,
pois, aceitos ou rejeitados segundo possamos ou não desejar que se constituam
em leis internamente vinculantes (moral individual).
O
imperativo "não mentirás", por exemplo, não deve ser obedecido em
razão das consequências do seu cumprimento, pode-se, aliás, imaginar situações
em que seja vantajoso mentir, mas não pode ser obedecido em razão das
consequências justamente porque não poderíamos racionalmente desejar que a
mentira, e não a verdade, se transformasse em norma geral de conduta. Ou seja, a fórmula geral de moralidade
enunciada acima não decorre da observação empírica da natureza humana; ela é um
enunciado a priori da razão. Dela se deduz uma outra idéia: a de que,
sendo universais, as normas morais que nos conduzem são elaboradas por nós
mesmos enquanto seres racionais. Ou seja: a humanidade, e cada um de nós, é um
fim em si mesmo. Retoma-se o argumento já esboçado antes sobre a dignidade do
indivíduo. Se o agente racional é verdadeiramente um fim em si mesmo, ele deve
ser o autor das leis que observa, e é isso que constitui seu supremo valor.
Antes, porém, cabe um breve
comentário sobre o contexto polêmico dessa doutrina. Kant opõe-se explicitamente ao utilitarismo como doutrina moral em
que as leis reguladoras do comportamento são instrumentais com respeito aos
valores materiais das ações humanas, ou com respeito ao objetivo universal de
"felicidade". Se os valores são associados às inclinações subjetivas,
sustenta Kant, ainda que sob a forma genérica de "felicidade", eles
não são (por isso mesmo) definidos pela razão, e, se os homens deixam-se
orientar por eles, não são livres. Só a conduta racionalmente fundada é
compatível com a dignidade humana. Além disso, a moral utilitarista é
incompatível com a justiça (sobre a qual se falará abaixo). A definição
empírica, é portanto arbitrária, do que seja bom ou mau para os homens, leva a
uma situação em que aqueles que têm o poder de impor tal definição oprimem os
que dela discordam. Compreende-se também que, definido o que é "bom"
e o que é "mau" por aqueles que têm o poder de fazê-lo, tudo o mais,
e em particular a ordem jurídica, torna-se instrumento dos valores adotados.
Ora, a constituição jurídica, como veremos, é ela mesma um imperativo moral, e
portanto um valor em si.
A liberdade externa e a autonomia
A
liberdade, em Kant, é a liberdade de agir segundo leis. As leis descrevem
relações de causa e efeito. Portanto os homens são livres quando causados a
agir. Como se resolve o aparente paradoxo? Nos seres racionais a
causa das ações é o seu próprio arbítrio. Num
primeiro sentido, portanto, a liberdade é a ausência de determinações externas
do comportamento. Esse é o conceito negativo de liberdade. Daí decorre uma
definição "mais rica e mais fértil". Se as ações são causadas, obedecem a leis (que são "as condições
limitantes da liberdade de ação"). A liberdade da vontade não é
determinada por leis da natureza; mas nem por isso escapam ao império de um
certo tipo de leis, se assim não fosse, as ações humanas seriam não causadas, e
o conceito de "liberdade da vontade" seria contraditório consigo
mesmo. A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só
podem ser auto impostas. Esse é o conceito positivo de liberdade;
ele designa a liberdade como autonomia, ou a propriedade dos seres racionais de
legislarem para si próprios. A legislação racional é por sua própria
natureza uma legislação universal. Ora, as leis universais são as leis morais.
Liberdade e moralidade, política e universalidade são indissociáveis.
As observações feitas até aqui
tratam, ainda que de modo sumário, dos fundamentos da filosofia moral de Kant,
e introduzem o exame da sua doutrina do direito. Esse exame, por sua vez, é
indispensável para a compreensão do conceito kantiano da transição do estado de
natureza à sociedade civil.
A doutrina do direito
Normalmente,
o direito é "o corpo daquelas leis susceptíveis de tornar-se
externas, isto é, externamente promulgadas". Toda e qualquer lei impõe
deveres; mas o cumprimento desses deveres pode ou não ser coativamente exigido. No
primeiro caso, trata-se de leis morais; (não são coativamente exigidas) no
segundo, de normas jurídicas (são coativamente exigidas). Nesse argumento, a
moral abrange o direito, conforme há leis que há a exigência de serem cumpridas
ainda que não necessariamente sancionadas, o âmbito da moral é maior do que das
leis positivas. (lembre-se que a moral de Kant é pautada na razão).
O fundamento de ambos os tipos de
leis é a autonomia da vontade, e a referência a esse fundamento moral é
constitutiva do direito. Mas isso não
autoriza a dizer que toda lei positiva deva vincular-se internamente aos
sujeitos (ou seja, nem toda lei positiva deve ser pautada em uma lei moral).
Uma coisa não implica a outra. Idealmente, pode-se supor uma situação em que as
duas esferas se superponham, e em que, portanto, a conformidade à lei positiva
manifeste externamente a conformidade interna ao dever que ela explicita.
Portanto, Kant relata que o controle imperfeito da razão sobre as paixões
impede que isso ocorra. Tal é a irremovível condição humana. Quanto aos deveres
morais, os homens são responsáveis perante si mesmos; na esfera jurídica, são
responsáveis perante os demais. A liberdade moral se alcança pela eliminação
dos desejos e inclinações que impedem a adequação da conduta aos comandos da
razão; a liberdade jurídica consiste em não ser impedido externamente de
exercer seu próprio arbítrio (vontade).
Como não podia deixar de ser, Kant
não está interessado no direito positivo, mas na ideia, ou no conceito
universal a priori do direito. O objeto da reflexão são as relações
interpessoais, ou a sociabilidade. A questão é esta: qual é o principio da legislação que ordena as relações interpessoais
segundo a justiça? Se a justiça é o "conjunto das condições sob as
quais o arbítrio de um pode ser unido ao arbítrio de outro segundo uma lei
universal de liberdade", o
princípio, ou a "lei universal do direito", é o seguinte: "Age
externamente de tal maneira que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com
a liberdade de cada um segundo uma lei universal". A relação jurídica
diz respeito, antes de mais nada, à relação externa com o outro. Essa relação
envolve dois sujeitos capazes e responsáveis, cujas pretensões sobre um objeto
devem ser juridicamente coordenadas.
O
móbil da ação de cada um é a pretensão externamente manifestada; no ato
jurídico, não interessa saber qual é a pretensão interna de cada um. Enfim,
declaradas as pretensões, a justiça da transação não se avalia pelos benefícios
que cada um tira dela. Não tem sentido, por exemplo, dizer que tal operação de
compra e venda "foi injusta porque o preço foi muito alto". O que
importa é a forma do ato jurídico: a conformidade a uma norma que se aplica a
todos, e cujo princípio (ou juridicidade) está em garantir aos dois
contratantes o livre uso dos seus arbítrios.
Convém atentar para as implicações
políticas gerais da doutrina kantiana do direito. Em outras concepções, o
direito subordina-se a certos valores materiais: a ordem pública (como em
Hobbes, ou nas várias modalidades do pensamento autoritário), ou a igualdade
(como, por exemplo, nas concepções que erigem a "justiça social", as
reformas de estrutura ou o bem-estar social como valores supremos da ação
legislativa do Estado). Segundo Kant,
a sociedade se organiza conforme a
justiça, quando, nela, cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto
que não interfira na liberdade dos demais. Kant é possivelmente o mais
sólido e radical teórico do liberalismo.
As normas jurídicas são universais;
elas obrigam a todos, independentemente de condições de nascimento, riqueza
etc. Quem viola a liberdade de outrem ofende a todos os demais, e por todos
será coagido a conformar-se à lei e compensar os danos causados. A coerção é
parte integrante do direito; a liberdade, paradoxalmente, requer a coerção. Duas são as condições para o uso justo da
coerção. A primeira é a seguinte: "Se um certo exercício da liberdade é um obstáculo à liberdade [de
outrem] segundo as leis universais [isto é, se é injusto], então o uso da
coerção para opor-se a ele é justo". A segunda decorre da
universalidade das leis violadas: a
coerção só é justa quando exercida pela vontade geral do povo unido numa
sociedade civil.
Direito privado e direito público
Como jusnaturalista, Kant distingue
entre a lei natural e a lei positiva
(segundo a fonte; individuo ou estado) e entre direitos inatos e adquiridos (segundo sua exigibilidade dependa
ou não do seu acolhimento na lei positiva). As leis naturais se deduzem de princípios a priori; elas não requerem
promulgação pública e constituem o direito privado. As segundas expressam a
vontade do legislador, são promulgadas e constituem o direito público. Ou
seja, o direito privado para Kant, é aquele direito que o individuo concebe
como certo segundo seus próprios valores. E o Direito publico é aquele direito
vigente em uma determinada sociedade tanto o direito civil, como
constitucional, penal e etc.
Na
teoria de Kant NÃO se pode deduzir da distinção entre as fontes do direito
natural e do direito positivo que esses dois ramos constituem corpos jurídicos
dissociados um do outro, e menos ainda que Kant sustenta, no direito público,
uma tese do positivismo jurídico. A vontade do legislador, em Kant, não é o arbítrio do poder estatal,
mas a vontade geral do povo unido na sociedade civil. Embora tenham fontes
diferentes, portanto, o direito privado e o direito público têm o mesmo
fundamento: a autonomia da vontade. Por isso mesmo, as várias partes da
filosofia moral de Kant possuem uma "forma arquitetônica"; e (as
constituem um "sistema". O direito público, ou positivo, não é
idêntico ao direito natural; mas é necessário pressupor a existência de um nexo
sistemático entre eles, através do qual o princípio comum da justiça como
liberdade opera, em grau maior ou menor, na esfera do direito positivo e
constitui, dessa forma, a sua juridicidade.
A distinção kantiana entre direito
privado e público ressalta a existência, no estado de natureza, de um certo
tipo de sociabilidade natural derivada da racionalidade humana: "O estado de natureza não é oposto e
contrastado ao estado de sociedade, mas à sociedade civil, porque no estado de
natureza pode haver uma sociedade, mas não uma sociedade civil". (ou seja,
antes de haver o Estado organizado como tal, havia uma sociedade no estado de
natureza, advinda da sociabilidade natural dos homens); A armação sistemática
do argumento subseqüente pressupõe essa distinção.
Do contrato originário.
O ponto de partida para intender
sobre o contrato originário é a distinção entre a posse física e a
posse inteligível. A posse jurídica corresponde a esta última
(posse inteligível): ter direito a um objeto significa que o uso do que é
meu por outra pessoa, mesmo quando eu não o esteja utilizando, constitui uma
ofensa. Por outro lado a posse empírica, por sua vez, é fortuita e
baseada na vontade unilateral do possuidor.
Como se observa, a posse
jurídica "faz abstração de todas as condições da posse empírica no
espaço e no tempo". Ela é puramente racional. Ora, a possibilidade de
proibir legitimamente o uso do meu objeto por parte de todos os demais, mesmo
quando não o utilizo, pressupõe, necessariamente, o acordo de todos os demais. É necessário, portanto, pensar que,
originalmente, todos têm a posse coletiva de todos os bens, e que a base legal
da posse individual é o ato da vontade coletiva que a autoriza.
Tudo
isso nos ensina que no estado de natureza os homens não se relacionam apenas
segundo a força de cada um. Se assim fosse, não haveria posse jurídica.
Contudo, os homens são dotados de razão e de paixões. O estado de natureza é
instável: "Não há nele um juiz com competência para decidir com força de
lei as controvérsias sobre direitos". Por essa razão, a posse de jure no
estado de natureza é sempre provisória. Para que seja definitiva, ou
peremptória, deve ser garantida por uma autoridade superior. Ainda que
na obra de Kant não explicito um contrato social, podemos supor, que essas
ideias faz referencias ao mesmo.
O direito público é o direito
positivo, emanado do legislador para a regulação dos negócios privados (justiça
comutativa) e das relações entre a autoridade pública e os cidadãos (justiça
distributiva). Os indivíduos que se
relacionam em conformidade com leis publicamente promulgadas constituem uma
sociedade civil (status civilis); vista como um todo em relação aos membros
individuais, a sociedade civil se denomina Estado. Os termos "sociedade
civil" e "Estado", portanto, referem-se ao mesmo objeto,
considerado de pontos de vista distintos.
A
transição à sociedade civil é um dever universal e objetivo, porque decorre de
uma idéia a priori da razão. É certo que os homens no estado de natureza tendem
a hostilizar-se; mas a passagem de um estado a outro não obedece a motivos de
utilidade. Trata-se de um imperativo moral: o estado civil é a realização da
idéia de liberdade tanto no sentido negativo como positivo.
Pressupondo-se
necessariamente a juridicidade provisória do estado natural, o ato pelo qual se
"constitui" o Estado é o contrato originário, concebido como idéia a
priori da razão: sem essa idéia, não se poderia pensar um legislador
encarregado de zelar pelo bem comum, nem cidadãos que se submetem
voluntariamente às leis vigentes. Em outras palavras, "somente a idéia
daquele ato permite-nos conceber a legitimidade do Estado". É
irrelevante, portanto, saber se tal contrato foi ou não realizado de fato na
história. Aliás, para sermos precisos, contrato originário não
"constitui" a sociedade; ele a explica tal como ela deve ser. A idéia
do contrato remete não à origem mas ao padrão racional da sociedade, isto é,
remete a algo fora da história, e não no passado. Kant é claro sobre esse ponto
na seguinte passagem: "[O contrato originário] não é o princípio que
estabelece o Estado; antes, é o princípio do governo político e contém o ideal
da legislação, da administração e da justiça pública legal".
A negação do direito de
resistência ou de revolução
Esse procedimento metodológico tem
desdobramentos teóricos e políticos muito importantes. Kant afirma que a base da legitimidade é o consenso; mas o consenso é
entendido como suposto teórico necessário. Com isso, a latitude de interpretação
do fenômeno numa situação concreta qualquer é infinita. Na exposição do
argumento, não se faz sequer a distinção entre consenso explícito e tácito,
como em Locke; se há Estado, há consenso. Na
mesma ordem de considerações, se o contrato é uma idéia, todos os Estados
existentes nela se fundamentam, por imperfeitos que sejam; dela procuram
aproximar-se e dela participam. Em conseqüência, os cidadãos não podem opor-se
aos seus governantes em qualquer hipótese. A teoria kantiana da obrigação
política, vinculada à sua concepção apriorística do contrato, estabelece o
dever de obediência às leis vigentes, ainda que elas sejam injustas.
Nisso, ele difere de Hobbes, para quem as leis do soberano são sempre justas, e
por isso devem ser respeitadas, e de Locke, que admite o direito de resistência
no caso de leis injustas.
Kant retorna a essa questão em
várias passagens, não sem uma certa vacilação e flutuação do argumento. Aqui
ele declara: "A mais leve tentativa [de rebelar-se contra o chefe do
Estado] é alta traição, e a um traidor dessa espécie não pode ser
aplicada pena menor que a morte". Ali, ele admite que o destronamento do
monarca pode ser escusável, embora não permissível: o argumento básico da
recusa do direito de revolução, contudo, persiste, e apresenta-se em três
versões.
A primeira é a seguinte: "Para que o povo possa julgar a
suprema autoridade política que tem a força da lei, deve ser considerado como
já unificado sob a vontade legislativa geral; portanto" - em virtude do
pacto originário sem o qual não se poderia conceber o povo dessa maneira -
"seu julgamento não poderia diferir do julgamento do presente chefe de
Estado". Numa interpretação menos rígida, poderíamos dizer que, se há
Estado, ele contém um princípio de ordem segundo leis, e, por pior que seja,
deve ser resguardado, porque representa um progresso em direção ao Estado
ideal.
A segunda versão está na "Paz
perpétua". Se os direitos do povo
são violados, não há injustiça em depor o soberano. Mas se o povo fracassa é
punido, também não pode reclamar de injustiça. A questão, em termos dos
fundamentos da justiça, decide-se como se segue. Nenhuma Constituição pode outorgar ao povo o direito à revolta, sob
pena de contradizer-se a si própria. Portanto, a revolta é ilegal. Isso se
demonstra como se segue: se a revolta ocorrer, ela tem de ser secretamente
preparada. O chefe do Estado, ao contrário, afirma publicamente seu poder
supremo, incontrastável; tal é a sua obrigação, porque ele deve comandar o povo
contra agressões externas. Ora, o princípio da publicidade é constitutivo do
direito público, e, por conseguinte, na situação de revolta, confrontam-se uma
vontade particular e uma vontade geral. O sucesso eventual de uma revolta
apenas demonstra que a necessária suposição de que o soberano detinha,
efetivamente, o poder supremo era falsa, e a questão da justiça não se coloca.
A terceira versão do argumento
encontra-se em "Sobre o ditado popular..." [A idéia do contrato
originário] obriga todo legislador a considerar suas leis como podendo ter sido
emanadas da vontade coletiva de todo o povo, e a presumir que todo sujeito,
enquanto ele deseja ser um cidadão, contribuiu por seu voto à formação da
vontade legislativa. Tal é a pedra de
toque da legitimidade de toda lei pública. Se, com efeito, essa lei é tal que
seja impossivel que todo o povo possa dar a ela seu assentimento (se, por
exemplo, ela decreta que uma classe determinada de sujeitos deve ter
hereditariamente o privilégio da nobreza), essa lei não é justa. Mas se for
simplesmente possível que o povo a aprove, então temos o dever de considerá-la
justa.
A possibilidade ou impossibilidade
de que uma lei seja justa se avalia por referência aos princípios racionais do
direito, e não à efetiva manifestação popular sobre a questão. O exemplo que
nos dá Kant no mesmo ensaio ilustra o ponto. No caso de decretação de um imposto de guerra proporcional a todos, o
povo não pode opor-se sob argumento de que a guerra não lhe parece
indispensável, porque "näo lhe compete emitir juízo sobre a questão".
Mas se o imposto recair sobre alguns e não sobre outros, a lei é injusta e pode
ser contestada.
O Estado liberal
Kant, como Rousseau, recusa o
dilema hobbesiano: “liberdade sem paz ou paz mediante
submissão ao Estado”. Ambos compatibilizam teoricamente os dois termos
(liberdade e Estado) mediante o conceito de autonomia: as leis do soberano são
as leis que nos demos a nós próprios. Mas há entre os dois autores uma
diferença fundamental. Rousseau formula uma certa versão de um Estado
democrático (visto que o poder vem do povo em geral); Kant é um teórico do liberalismo (o poder, parte, da liberdade
individual). Kant concebe o Estado como um instrumento (necessário) da
liberdade de sujeitos individuais. Em Kant, a autonomia deduz-se da
liberdade negativa, e a preserva e garante. A liberdade como não impedimento no
estado de natureza é precária, e requer o exercício da autonomia. A reconciliação dos homens consigo mesmos
enquanto seres livres necessita a promulgação pública das leis universais, que
manifesta a disposição de todos e de cada um de viver em liberdade.
Essa construção teórica tem
notáveis implicações políticas, já esboçadas acima. No sistema kantiano, nega-se às autoridades públicas o dever e o
direito de promover a felicidade, o bem-estar ou, de modo geral, os objetivos
materiais da vida individual ou social. A razão disso é a seguinte: a
legislação deve assentar sobre princípios universais e estáveis, ao passo que as
preferências subjetivas são variáveis de indivíduo a indivíduo e cambiantes no
tempo. Além disso, a ninguém é dado o direito de prescrever a outrem a receita
da sua felicidade. O que deve, então, fazer o Estado? Ao Estado incumbe
promover o bem público; o bem público é a manutenção da juridicidade das
relações interpessoais. Nas palavras de Kant: A máxima salus publica, suprema civitatis lex est permanece em sua
validez imutável e em sua autoridade; mas o bem público, que deve ser atendido
acima de tudo, é precisamente a constituição legal que garante a cada um sua
liberdade através da lei. Com isso, continua lícito a cada um buscar sua
felicidade como lhe aprouver, sempre que não viole a liberdade geral em
conformidade com a lei e, portanto, o direito dos outros consorciados. Essa
passagem expande e esclarece a fórmula adotada por Kant nos Elementos:
"As leis do direito público referem-se apenas à forma jurídica da
convivência entre os homens".
Somente
em um caso o Estado é autorizado a adotar políticas de conteúdo subjetivo. A
autoridade pública deve prover a subsistência dos que não podem viver por seus
próprios meios (porque a sua própria existência depende de que eles façam parte
da sociedade, dela recebendo proteção e cuidado). Se, fora disso, "o Estado
estabeleceu leis que visam diretamente a felicidade [o bem-estar dos cidadãos,
da população etc.], isso não se faz a título de estabelecimento de uma
constituição civil, mas como meio para garantir o Estado jurídico para que o povo exista como república".
Compreende-se que, não sendo um dever constitutivo do Estado, essas medidas
dependem exclusivamente do julgamento pessoal (prudência) do governante.
A dialética kantiana da história
Importa reter aqui o significado
geral do pensamento kantiano sobre o progresso humano: a política, como atividade de elaboração e aperfeiçoamento
constitucional, é um processo de racionalização das relações entre os homens e
entre os Estados. Mas o progresso não é um processo rápido, nem indolor. Ele é
lento, enganoso e sobretudo contraditório. A humanidade avança por efeito
da contraditoriedade das opiniões, dos interesses particulares e dos interesses
nacionais.
As opiniões devem entrechocar-se
livremente. Kant defende esse ponto de vista em "O que é a
ilustração?". Mas o que significa exatamente isso? Desde logo, é preciso não nos enganarmos com o que se poderia denominar
"a ilusão revolucionária". O povo rebelado, sob a liderança de
políticos ilustrados, pode derrubar um tirano, mas isso não altera seu nível
cultural. Em conseqüência, "novos preconceitos substituirão os
antigos para atrelar as grandes massas ignorantes". O verdadeiro caminho é
a liberdade, e, concretamente, a liberdade de opinião e de imprensa. O soberano
não é divino, e pode errar; é necessário, portanto, conceder aos cidadãos, com
o beneplácito do próprio soberano, o direito de emitir publicamente suas
opiniões e a liberdade de escrever. O alargamento do debate público é condição
do progresso.
Outra mola do progresso é o
conflito de interesses individuais, bem como de interesses nacionais. Aqui, o
progresso aparece como mera resultante não intencional da interação humana; ele
manifesta uma "finalidade secreta da natureza". Sem o "natural antagonismo entre os homens", escreve Kant,
"todas as excelentes capacidades naturais da humanidade permaneceriam para
sempre adormecidas, agradeçamos, portanto, à natureza, pela incompatibilidade,
pela cruel vaidade competitiva, pelo insaciável desejo de posse e dominação
(próprios dos homens)". Da mesma forma, o progresso em direção à paz
internacional contém em si o momento necessário da guerra: são as guerras que,
"depois de devastações, revoluções e até a completa exaustão, conduzem [os
homens] àquilo que a razão poderia ter ensinado a eles desde o início".
O entendimento kantiano do
"antagonismo natural" é bastante peculiar no campo do jusnaturalismo.
Em Hobbes, Rousseau e Locke, o antagonismo tem signo negativo, seja porque é a
antítese da sociabilidade, seja porque não traz nada de bom. O antagonismo kantiano não é incompatível
com a sociabilidade natural nem com a sociedade civil - nisso ele se diferencia
dos dois primeiros autores citados. (em Locker, não há antagonismo, apenas
pequenas contradições entre interesse na sociedade, na qual é sanada com o advento
do Estado) Ademais - e nisso ele se diferencia dos três -, ele atribui ao
antagonismo humano uma função positiva: ou seja, a competição e a guerra
não se relacionam à justiça e à paz como termos imediatamente antitéticos, mas
como mediações do progresso. Não seria excessivo descobrir no pensamento
kantiano sobre a história uma espécie de "dialética da ilustração",
em que a razão progride não pelo confronto da razão consigo própria, como em
Hegel, mas pela negatividade persistente das paixões humanas. Note-se, enfim,
que a dedução kantiana de padrões ideais - que na política em particular
funcionam como idéias reguladoras que se impõem praticamente aos governantes -
não parece conduzir a afirmação de que eles se realizarão fatal e concretamente
na história. (Parece-me que há uma certa separação ideológica em Kant em
relação a politica e a historia, aqui me parece que ela já tinha lido David
Hume e mudado de ideia, rsrs*)
A
filosofia de Kant sobre os móveis do progresso é um elogio da divergência e da
competição. O homem kantiano se assemelha ao homem que, em Adam Smith, por exemplo,
visa maximizar seu lucro no mercado e, ao fazê-lo, promove a prosperidade
geral. (ainda que para certos teóricos tal fato é negativo, a soberba
e a ganancia). Entretanto, a natureza,
para um (Kant), o mercado, para outro (Adam Smith), desempenham ambos a função
de "mão invisível do progresso". Desse ponto de vista, Kant é o mais
"moderno" dos pensadores liberais clássicos, ele näo apenas declara a
soberania do indivíduo, mas também legitima filosoficamente o indivíduo
empreendedor.
Não se trata, é claro, para o autor, de celebrar o interesse particular enquanto tal, mas de reconciliar os particularismos em choque com a idéia de uma sociedade justa. No plano da teoria do direito, a sociedade justa (a sociedade regulada por leis emanadas da vontade geral) é pressuposta, e as ações individuais manifestam apenas a subjetividade de cada um no exercício de sua liberdade negativa. Já no plano da teoria da história, a sociedade ideal emerge progressivamente das ações individuais enquanto exercício da liberdade natural, pré-contratual, a qual, se não instaura imediatamente um estado de perfeita injustiça, envolve, näo obstante, a expropriação, o domínio e a guerra (relações de poder).
Nenhum comentário :
Postar um comentário