Rousseau - Da Servidão a Liberdade. |
Este filho de relojoeiro, pela sua
condição social, não iria encontrar um caminho muito fácil pela frente, se
quisesse ingressar no mundo das letras, dominado, na sua maioria, por
pensadores como Voltaire, cuja linhagem era a de uma burguesia bem abastada,
que frequentava os famosos “salões” da época e não dispensavam um certa
proximidade da corte. Rousseau será sempre avesso aos salões e às cortes. Será
um filosofo à margem dos grandes nomes de seu século, mas nem por isso estaria
afastado das polemicas e chegou ate contribuir, a convite de Diderot, para a
grande Enciclopédia, com artigos sobre música e economia politica.
Dentre os
filósofos do chamado século das luzes, que preconizavam a difusão do saber como
o meio mais eficaz para se pôr fim à superstição, à ignorância, ao império da
opinião e do preconceito, e que acreditavam estar dando uma contribuição enorme
para o progresso do espírito humano, Rousseau, certamente, ocupa um lugar não
muito cômodo em relação a essas ideias. Seu ingresso na república das letras
deu-se com a obtenção do prêmio concedido pela Academia de Dijon, que havia
proposto o seguinte tema para dissertação: "O restabelecimento das
ciências e das artes teria contribuído para aprimorar os costumes?" Ao
responder negativamente a essa questão, Rousseau iria marear uma posição bem
diferente do espírito da época. "Se
nossas ciências são inúteis no objeto que se propõem, são ainda mais perigosas
pelos efeitos que produzem." (Rousseau, J. J. Discours surr les sciences et
les arts. Paris, Pléade,
1954. P. 18)Antes pois de defender o processo de difusão das luzes, impõe-se
perguntar sobre que tipo de saber tem norteado a vida dos homens.
A crítica às
ciências e às artes, contudo, não significa uma recusa do que seria a
verdadeira ciência. De certa maneira, se Rousseau não partilha com seus
contemporâneos o ideal da difusão das luzes do saber, pode-se dizer que, ao
invocar o ideal do sábio, sua exigência é ainda maior do que a deles, porque
acompanhada de uma forte conotação moral. A
ciência que se pratica muito mais por orgulho, pela busca da glória e da
reputação do que por um verdadeiro amor ao saber, não passa de uma caricatura
da ciência e sua difusão por divulgadores e compiladores, autores de segunda
categoria, que só contribuir para piorar muito mais as coisas.
Segundo Rousseau
a verdadeira filosofia é a virtude, esta ciência sublime das almas simples,
cujos princípios estão gravados em todos os corações. Para se conhecer suas
leis basta voltar-se para si mesmo e ouvir a voz da consciência no silêncio das
paixões. Uma vez porém que já quase não mais se encontram homens virtuosos, mas
apenas alguns menos corrompidos do que outros, as ciências e as artes, embora
tenham contribuído para a corrupção dos costumes, poderão, no entanto,
desempenhar um papel importante na sociedade, o de impedir que a corrupção seja
maior ainda. Não se trata, portanto, de acabar com as academias, as
universidades, as bibliotecas, os espetáculos. As ciências e as artes podem
muito bem distrair a maldade dos homens e impedi-los de cometer crimes
hediondos.
Desse modo,
conforme Rousseau nos diz no "Prefácio" de Narciso, não há nenhuma incompatibilidade em fazer a
crítica radical das ciências e das artes e, ao mesmo tempo, escrever peças de
teatro e livros sobre moral e política. Embora todas as ciências e as artes
tenham feito mal à sociedade, é essencial hoje servir-se delas, como de um
remédio para o mal que causara. É pois nesse quadro que o autor se
coloca, destoando bastante de seus contemporâneos, mas ao mesmo tempo marcando
de maneira precisa o sentido mesmo de sua atividade como escritor.
O Pacto Social
O Pacto Social
Aqui vai as ideias
apenas do Contrato social e do Discurso sobre a origem e os
fundamentos da desigualdade entre os homens, porque constituem uma unidade
temática importante e porque os demais escritos de Rousseau, de certa maneira,
aprofundam e explicitam as questões que já haviam sido abordadas nessas duas
obras.
A chave para se
entender a articulação entre essas duas obras está no primeiro parágrafo no
capitulo 1, do livro 1, do Contrato: “O
homem nasce livre, e por toda parte encontra-se aprisionado. O que se crê senhor
dos demais, não deixa de ser mais escravo do que eles. Como se deve
esta transformação? Eu o ignoro: o que poderá legitimá-la? Creio poder resolver
esta questão". Assim nos
diz Rousseau.
A trajetória do
homem, da sua condição de liberdade no estado de natureza, até o surgimento da
propriedade, com todos os inconvenientes que dai surgiram, foi descrita
no Discurso sobre a origem da desigualdade. Nesta obra, o objetivo de
Rousseau é o de construir a história hipotética da humanidade, deixando de lado
os fatos, procedimento semelhante ao que outros filósofos (como Locke e Hobbs)
já haviam feito no século XVII.
Comecemos
por afastar todos os fatos, pois eles não dizem respeito a questão. Não se
devem considerar as pesquisas, em que se pode entrar neste assunto como
verdades históricas, mas somente como raciocínios hipotéticos e condicionais,
mais apropriados a esclarecer a natureza das coisas do que a mostrar a
verdadeira origem e semelhantes àqueles que, todos os dias, fazem nossos
físicos sobre a formação do mundo.
Ao declarar que ignora o processo de transformação
do homem, da liberdade à servidão, nosso autor se refere aos fatos reais, que
seriam bem difíceis de serem verificados, uma vez que os vestígios deixados pelos
homens são insuficientes para que se tenha uma idéia precisa de toda a sua
história. Esta, porém, pode ser construída hipoteticamente e demonstrada
através de argumentos racionais. Qual
seria pois a história hipotética da humanidade? Esta seria, precisamente, a que
culmina com a legitimação da desigualdade, quando o rico apresenta a proposta
do pacto, apresentando esse discurso. “Unamo-nos
para defender os fracos da opressão, conter os ambiciosos e assegurar a cada um
a posse daquilo que lhe pertence, instituamos regulamentos de justiça e de paz,
aos quais todos sejam obrigados a conformar-se, que não abram exceção para
ninguém e que, submetendo igualmente a deveres mútuos o poderoso e o fraco,
reparem de certo modo os caprichos da fortuna.” Em outras palavra, em lugar de
voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder supremo que nos
governe segundo sábias leis, que protejam e defendam todos os membros da
associação, expulsem os inimigos comuns e nos mantenham em concórdia eterna.
Este seria o pacto proposto pelos ricos aos pobres.
E Rousseau
acrescenta logo em seguida:
Fora preciso
muito menos do que o equivalente desse discurso para arrastar homens
grosseiros, fáceis de seduzir, [ ... ] Todos correram ao encontro de seus
grilhões, crendo assegurar sua liberdade [ ... ] Tal foi ou deveu ser a origem
da sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao
rico, destruíram irremediavelmente a liberdade natural, fixaram para sempre a
lei da propriedade e da desigualdade, fizeram de uma usurpação sagaz um direito
irrevogável e, para proveito de alguns ambiciosos, sujeitaram doravante todo o
gênero humano ao trabalho, à servidão e a miséria.
É a partir do
reconhecimento dessa situação que Rousseau inicia o Contrato social,
afirmando que "o homem nasce livre
e em toda parte encontra-se a ferros", devido a traição cometida pelos
ricos, ao prometerem que com um Estado haveria igualdade, mas o que se deu foi
justamente o contrario.
Rousseau se
pergunta como ocorreu a mudança da liberdade para a servidão e responde
imediatamente que não sabe, mas que pode resolver o problema da sua
legitimidade, é preciso entender que não é o caso de legitimar a servidão, pois
isto ele denunciara no Discurso, na passagem que acabamos de citar. O que pretende estabelecer no Contrato
social são as condições de possibilidade de um pacto legítimo, através do
qual os homens, depois de terem perdido sua liberdade natural, ganhem, em
troca, a liberdade civil. Tais condições serão desenvolvidas ao longo dos
capítulos VI, VII e VIII do livro I do Contrato. No processo de legitimação do
pacto social, o fundamental é a condição de igualdade das partes contratantes.
As cláusulas do contrato, quando bem compreendidas, reduzem-se a uma só: a
alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade
toda porque em primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é
igual para todos e, sendo a condição igual para todos, ninguém se interessa por
tornar onerosa para os demais. Em suma, Rousseau pretende com isso
que faça um novo contrato, mas, um contrato legitimo. A situação é bem
diferente daquela descrita no Discurso sobre a origem da desigualdade. Agora, ninguém sai prejudicado, porque o
corpo soberano que surge após o contrato é o único a determinar o modo de
funcionamento da máquina política, chegando até mesmo a ponto de poder
determinar a forma de distribuição da propriedade, como uma de suas atribuições
possíveis, já que a alienação da propriedade de cada parte contratante foi
total e sem reservas. Desta vez, estariam dadas todas as condições para a
realização da liberdade civil, pois o povo soberano, sendo ao mesmo tempo parte
ativa e passiva, isto é, agente do processo de elaboração das leis e aquele que
obedece a essas mesmas leis, tem todas as condições para se constituir enquanto
um ser autônomo, agindo por si mesmo. Nestas condições haveria uma conjugação
perfeita entre a liberdade e a obediência.
Obedecer à lei que se prescreve a si
mesmo é um ato de liberdade. Fórmula que seria desenvolvida mais tarde por
Kant. Um povo, portanto, só será livre quando tiver todas as condições de
elaborar suas leis num clima de igualdade, de tal modo que a obediência a essas
mesmas leis signifique, na verdade, uma submissão à deliberação de si mesmo e
de cada cidadão, como partes do poder soberano. Isto é, uma
submissão à vontade geral e não à vontade de um indivíduo em particular ou de
um grupo de indivíduos.
A vontade e a representação
A vontade e a representação
Para Rousseau,
antes de mais nada, impõe-se definir o governo, o corpo administrativo do
Estado, como funcionário do soberano, como um órgão limitado pelo poder do povo
e não como um corpo autônomo ou então como o próprio poder máximo,
confundindo-se neste caso com o soberano. Neste sentido, dentro do esquema de
Rousseau, as formas clássicas de governo, a monarquia, a aristocracia e a
democracia, teriam um papel secundário dentro do Estado e poderiam variar ou
combinar-se de acordo com as características do país, tais como a extensão do
território, os costumes do povo, suas tradições etc. Mesmo sob um regime monárquico, segundo Rousseau, o povo pode manter-se
como soberano, desde que o monarca se caracterize como funcionário do povo.
Desde que o governantes, não ultrapasse o legitimo poder, que no caso, seria o
povo, de modo que o povo tem a obrigação de se mante em alerta quanto aos
abusos.
Uma vontade não
se representa. "No momento em
que um povo se dá representantes, não é mais livre, não mais
existe." O exercício da vontade geral através de representantes
significa uma sobreposição de vontades. Ninguém pode querer por um outro.
Quando isto ocorre, a vontade de quem a delegou não mais existe ou não mais
está sendo levada em consideração. Donde se segue que a soberania é
inalienável. Mas Rousseau reconheceria a necessidade de representantes
a nível de governo. E, se já era necessária uma grande vigilância em relação ao
executivo, por sua tendência a agir contra a autoridade soberana, não se deve
descuidar dos representantes, cuja tendência é a de agirem em nome de si mesmos
e não em nome daqueles que representam. Para
não se perpetuarem em suas funções, seria conveniente que fossem trocados com
uma certa freqüência.
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