BEM VINDO
  • ALEXIS DE TOCQUEVILLE

    O grande drama tocquevilliano é buscar a solução sobre a questão da preservação da liberdade na igualdade.

  • ANALISE ECONOMICA DO DIREITO

    Economistas e juristas buscam em linguagens próprias o mesmo objetivo: uma sociedade melhor com um avanço do quadro de bem-estar social ou justiça.

  • THOMAS HOBBES

    Se dois homens desejam a mesma coisa, de modo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.

  • LUDWING VON MISSES

    O fato é que, no sistema capitalista, os chefes, em última instância, são os consumidores. Não é o estado, é o povo que é soberano.

domingo, 29 de julho de 2012

Stuart Mill: Sobre seu corpo e mente o individuo é soberano.


O individuo e a liberdade 
Nascido em Londres, John Stuart Mill é filho de James Mill filósofo e historiador da Índia, considerado, ao lado de Jeremy Bentham, um dos fundadores do utilitarismo inglês. Desde a sua mais tenra infância, Mill se viu às voltas com os  projetos educacionais de seu pai, determinado a fazer do jovem Mill o  porta-voz da escola utilitarista para as novas gerações. Com o auxílio de seu amigo e vizinho Jeremy Bentham, James Mill colocou em prática um rígido plano pedagógico destinado a garantir o sucesso intelectual de seu filho. Assim é que, aos três anos, o pequeno Mill iniciou-se na leitura do grego. Aos oito, aprendeu latim e aos doze anos já havia estudado quase todas as obras do pensamento clássico. Nos anos subseqüentes, seus estudos foram orientados para os campos da história, psicologia, filosofia e lógica.

Stuart Mill nunca frequentou os bancos de uma universidade. Apesar disso, sua maturidade intelectual era patente já aos quinze anos de idade, quando se encarregou de revisar algumas obras jurídicas de Jeremy Bentham. Aos dezessete anos publicou seu primeiro artigo. Nesta mesma época, começou a trabalhar sob as ordens de seu pai nos escritórios da Companhia das Índias Orientais. Conquistava assim uma colocação capaz de lhe assegurar estabilidade financeira e o tempo necessário para suas atividades intelectuais.   

A popularidade de Mill como escritor político e seu interesse pelas questões políticas mais prementes de sua época levaram-no a participar mais diretamente da política. Em 1865, Stuart Mill foi eleito como representante por Westminster para o Parlamento. Entretanto, sua carreira política foi breve. Stuart Mill näo conseguiu se reeleger em 1868. Derrotado, Mill retirou-se para Avignon, na França, onde permaneceu até sua morte.

John Stuart Mill nasceu em 8 de maio de 1806 e faleceu a 16 de maio de 1873. Ao longo dos 67 anos de sua vida, Stuart Mill foi testemunha de mudanças fantásticas tanto na sociedade como na política e na economia de seu país, a Inglaterra. As raízes destas transformações datam da segunda metade do século XVIII, com o advento da Revolução Industrial.  Falando desta revolução, um conhecido historiador de nossos dias nos dá uma boa indicação de sua magnitude para a história da humanidade. Para Eric Hobsbawm, "nenhuma mudança na vida humana, desde a invenção da agricultura, da metalurgia e do surgimento das cidades no neolítico foi tão profunda como o advento da industrialização".

Stuart Mill não viveu os primeiros momentos desta revolução. Mas foi contemporâneo de seu apogeu, quando os trilhos das ferrovias inglesas se estendiam por todos os continentes, atravessando regiões onde antes nada havia passado. Foi esta a época em que se consolidou o mais vasto império de que se tem notícia na história: o Império Colonial Britânico, onde, dizia-se, o sol jamais se punha dentro de seus limites. Alguns dos resultados mais óbvios destas transformações são bem conhecidos: o surgimento da classe operária, da burguesia industrial e financeira e a universalização de uma economia de bases monetárias. Tudo junto concorrendo para a construção de uma nova ordem essencialmente moderna.

Tão importantes quanto estas transformações na economia e na sociedade inglesa daquela época foram as mudanças que se verificaram na política daquele país. Nesta dimensão, os resultados podem ser agrupados em dois grandes blocos: em primeiro lugar temos a constituição de um conjunto de instituições capazes de canalizar e dar voz à oposição, criando um sistema legítimo (por isso mesmo reconhecido por todas as partes) de contestação pública. Antes de avançar nestas considerações, é preciso deixar claro o que queremos dizer com a expressão "sistema de contestação pública". A existência de oposição é um fato inerente a todo e qualquer processo político. Tomado em sentido bem amplo, é através da política que toda sociedade enfrenta uma questão crucial: quais os critérios que irão presidir a alocação da riqueza e dos valores socialmente produzidos. Uma vez que esta riqueza e estes valores são finitos, a insatisfação é um resultado previsível em qualquer decisão política. Isto significa que o processo político sempre traz latente uma dose de competição que pode no máximo ser abafada, mas nunca eliminada. Pois bem, a "invenção" moderna está em criar mecanismos para absorver esta competição, institucionalizando procedimentos capazes de dar voz à insatisfação, ao mesmo tempo que neutralizam os componentes desagregadores presentes na atividade da oposição, tornando-a alternativa de governo. Diga-se, Stuart Mill foi um dos maiores defensores a dar voz, de modo que para ele, a competição e os diferentes interesses que se chocam na sociedade é fator crucial para o desenvolvimento.

Em segundo lugar, temos o alargamento das bases sociais do sistema político, com a incorporação de setores cada vez mais amplos da sociedade. Na Inglaterra do século passado, este último processo se realizou mediante a expansão da participação eleitoral. As grandes reformas eleitorais de 1832, 1867 e 1884 terminaram por universalizar o direito de voto pelo menos para a população masculina, ao mesmo tempo que aumentavam a representatividade da tradução dos resultados eleitorais em cadeiras no Parlamento. Um dos resultados mais visíveis disso foi a constituição de um sistema de partidos eleitorais de bases amplas e competitivo, em condições de canalizar a participação da população no sistema político.

As transformações que esquematizei acima não aconteceram todas à mesma época. A incorporação de mecanismos institucionais capazes de administrar o dissenso entre as elites politicas precedeu por quase um século a abertura desse sistema à participação popular .  Na época em que Stuart Mill viveu, boa parte dos esforços necessários para tornar efetivos os canais de competição politica já havia produzido os seus frutos. Ao tempo de Stuart Mill, a questão candente que desafiava a imaginação das elites politicas inglesas era a incorporação pacifica da massa de trabalhadores empobrecidos pela industrialização, e que tais batiam as portas do sistema politico.  Visto em retrospectiva, a solução encontrada para este problema assume uma aparência tradicionalista que encobre os imensos riscos que lhe eram inerentes e que não podem ser subestimados numa apreciação histórica. Como nos informa Eric Hobsbawm

“As possibilidades de uma revolução foram invulgarmente grandes. [...]. Nenhum governo britânico podia confiar, como todos os governos franceses, alemães ou americanos do século XIX, em mobilizar as forças políticas do campo contra a cidade, em arregimentar vastas massas camponesas e pequenos lojistas e outros pequenos burgueses contra uma minoria - muitas vezes dispersa e localizada - de proletários. (ou seja, mobilizar forças politicas de pessoas que não tinha relação com a industrialização, contra pessoas do proletariado, pessoas que faziam parte da industrialização, que no tempo ainda era uma minoria, incluídos ai empresários e trabalhadores). A primeira potência industrial do mundo foi também aquela em que a classe trabalhadora manual (não industrializada) era a mais numerosa.”

É este o pano de fundo que dá significado à trajetória da vida e da obra de John Stuart Mill, apontado como o mais legítimo representante do movimento liberal inglês do século passado. Em sua obra encontramos ecos de todas as fases por que passou este movimento desde o utilitarismo radical dos primeiros anos do século até a sua fase democrática, defensora do sufrágio universal e de reformas sociais.

Individuo e Liberdade.
A posição de Stuart Mill sobre estas questões tem raízes na concepção utilitarista defendida por Bentham e James Mill. Para estes dois autores, a realidade da economia de mercado constitui-se num paradigma teórico (praticidade) para a construção de seus modelos de sociedade e de indivíduo. Desta forma, a natureza humana parece-lhes essencialmente pragmática, sendo o homem é um maximizador do prazer e um minimizador do sofrimento. A sociedade é o agregado de consciências autocentradas e independentes, cada qual buscando realizar seus desejos e impulsos. O bem-estar pode ser calculado para qualquer homem subtraindo-se o montante de seu sofrimento do valor bruto de seu prazer. Prazer, dor, felicidade e ventura são aqui tomados em um sentido quantitativo radical. É possível assim se chegar a um cálculo da felicidade da sociedade, obtido através do somatório dos resultados destas operações para cada indivíduo. O bom governo será aquele capaz de garantir o maior volume de felicidade líquida para o maior número de cidadãos. Para cada ação ou questão política, é sempre possível aplicar este raciocínio para avaliar a "utilidade" de seus resultados.

Stuart Mill retém em sua obra o princípio básico do utilitarismo, que vê no bem-estar assegurado o critério último para a avaliação de qualquer governo ou sociedade. Entretanto, estabelece uma distinção fundamental que o levará a trilhar caminhos opostos daqueles advogados por seus mestres. Para Stuart Mill, a primeira dificuldade está em se tomar a felicidade como algo passível de mensuração puramente quantitativa. Na avaliação desta dimensão da natureza humana intervém um elemento qualitativo que lhe é intrínseco. É justamente esta a porta por onde Mill introduz uma alteração radical na concepção sobre a natureza do homem. O Homem é um ser capaz de desenvolver suas capacidades. E, ademais, faz parte de sua essência a necessidade deste desenvolvimento.

Dessa forma temos um modelo progressivo da natureza humana e um critério novo para a aferição de um bom governo: "O grau em que ele tende a aumentar a soma das boas qualidades dos governados, coletiva e individualmente", ou seja, a qualidade do bem estar tem que sempre ser aumentada e nunca diminuída, e ainda  inferindo para um maior número de pessoas. E aqui vai se fundi a utilidade da democracia e da liberdade. O governo democrático é melhor porque nele encontramos as condições que favorecem o desenvolvimento das capacidades de cada cidadão, de modo que ele sempre vai poder busca o melhor para ele em termo de qualidade e não apenas quantidade em relação ao Estado. Assim diz Mill:
    
“É um grande estímulo adicional à auto-independência e à auto-confiança de qualquer pessoa o fato de saber que está competindo em pé de igualdade com os outros, e que seu sucesso não depende da impressão que puder causar sobre os sentimentos e as disposições de um corpo do qual não faz parte. Ser deixado fora da Constituição é um grande desencorajamento para um indivíduo e ainda maior para uma classe. [...] O efeito revigorante da liberdade só atinge seu ponto máximo quando o indivíduo está, ou se encontra em vias de estar, de posse dos plenos privilégios de cidadão.”

Observe que Mill refere aqui, também, a importância de ter um representante no Parlamento de cada classe, para que essa se sinta em  pé de igualdade e não se sinta desencorajados a fazer o que lhe convem melhor para aumentar sua qualidade de vida, claro, respeitando o limites que outros indivíduos também possui. Foi justamente na defesa desta liberdade que Mill escreveu aquela que pode ser considerada sua obra maior: On liberty (Sobre a liberdade). O argumento central desta obra assenta-se numa proposição bastante simples, mas que até hoje não perdeu seu timbre de novidade. O elogio da diversidade e do conflito como forças matrizes por excelência da reforma e do desenvolvimento social.
   
Com a perspicácia que lhe é característica, Mill aponta para o fato de que uma sociedade livre, na medida mesmo em que propicia o choque das opiniões e o confronto das idéias e propostas, cria condições ímpares para que "a justiça e a verdade" subsistam. Desta forma, garante-se, através do conflito, o progresso e a auto-reforma da sociedade. Em sociedades não livres (como a chinesa, nos diria Mill), a reforma e o desenvolvimento social só podem aparecer como fruto do acaso ou de esforços intermitentes levados a cabo por déspotas mais ou menos esclarecidos. Para Mill, a liberdade não é um direito natural. Como utilitarista, ele recusa a teoria dos direitos naturais. Mas a liberdade também não é um luxo que interesse apenas a uma minoria esclarecida. É antes de mais nada o substrato necessário para o desenvolvimento de toda a humanidade. E o é principalmente porque ela torna possível a manifestação da diversidade, a qual, por sua vez, é o ingrediente necessário para se alcançar a verdade.
   
Na obra de Mill encontramos, portanto, a pré-história de duas noções muito caras à ciência política contemporânea: a defesa do pluralismo e da diversidade societal contra as interferências do Estado e da opinião pública (esta última, a tirania da "opinião prevalecente", a pior, porque mais sistemática e cotidiana); e a perspectiva de sistemas abertos, multipolares, onde a administração do dissenso predomine sobre a imposiçäo de consensos amplos.

Um novo liberalismo
Em um artigo recentemente publicado, Norberto Bobbio propôs que todo o problema político pode ser sempre abordado segundo duas perspectivas diametralmente opostas: a do príncipe, na ótica descendente, de quem vê a sociedade "de cima"; e a perspectiva popular, ascendente, de quem é alvo do poder. Sem dúvida, estas duas posições podem ser tomadas como extremos de um contínuo no qual poderiam ser ordenadas todas as obras de reflexão sobre a política.
   
A era moderna incorporou uma nova dimensão a esta primeira. Aquela que distingue uma concepção organicista do indivíduo e da sociedade da concepção individualista.

O ponto de partida da concepção organicista é a natureza social (e não apenas gregária) do homem.  Isto significa que, segundo esta visão, a natureza humana estaria condicionada pela forma com que o indivíduo se insere no agrupamento social, mais especificamente não existe o homem em geral (indivíduos), mas apenas homens social e historicamente determinados. Do ponto de vista analítico, o grupo social vem em primeiro lugar, e as ações humanas têm significado apenas na medida em que espelham características do grupo ou refletem relações entre os grupos.
   
A concepção individualista, num certo sentido, coloca o homem antes da sociedade e vê nesta última, principalmente na sua instância política, um elemento de artificialidade que não aparece na concepção organicista. Para esta perspectiva de análise, as ações humanas são auto-referenciadas e importam em si mesmas. Por isso, podemos dizer que esta concepção inverte a relação indivíduo-grupo, fazendo do último um reflexo do primeiro. O agregado social é, assim, o produto de uma espécie de soma vetorial das atividades, interesses e impulsos dos indivíduos que o compõem.
   
Historicamente, a concepção individualista nasceu em polêmica com a concepção organicista. Os argumentos válidos em favor de uma ou de outra são ponderáveis. Entretanto, não é este o local apropriado para o balanço deste debate. Para nós importa verificar que compondo as duas dimensões que apresentamos nos parágrafos anteriores podemos obter um modelo simples porém extremamente útil para a localização da obra de Stuart Mill.

Stuart Mill é por muitos considerado o grande representante do pensamento liberal democrático do século passado. Com Mill, o liberalismo despe-se de seu ranço conservador, defensor do voto censitário e da cidadania restrita, para incorporar em sua agenda todo um elenco de reformas que vão desde o voto universal até a emancipação da mulher. Na obra de Mill podemos acompanhar um esforço articulado e coerente para enquadrar e responder as demandas do movimento operário inglês. De certa forma, a obra de Mill pode ser tomada como um compromisso entre o pensamento liberal e os ideais democráticos do século XIX. O fundamento deste compromisso está no reconhecimento de que a participação política não é e não pode ser encarada como um privilégio de poucos. E está também na aceitação de que, nas condições modernas, o trato da coisa pública diz respeito a todos. Daí a preocupação de Mill em dotar o estado liberal de mecanismos capazes de institucionalizar esta participação ampliada.

Em Mill, não se trata apenas de acomodar-se ao inevitável. A incorporação dos segmentos populares é para ele a única via possível para salvar a liberdade inglesa de ser presa dos interesses egoístas da próspera classe média. O voto para Mill não é um direito natural. Antes, o voto é uma forma de poder, que deve ser estendido aos trabalhadores para que estes possam defender seus direitos e interesses no mais puro sentido que o liberalismo atribui a esta expressão. Nas palavras de Mill:

Não devem existir párias em uma sociedade adulta e civilizada. [...] As pessoas que, sem consulta prévia, se apoderam de poderes ilimitados sobre os destinos dos outros degradam os seus semelhantes. [...] É natural que os que são assim degradados não sejam tratados com a mesma justiça que os que dispõem de uma voz. Os governantes e as classes governantes tém a necessidade de levar em consideração os interesses e os desejos dos que exercem o direito de voto; mas os interesses e os desejos dos que não o exercem está a seu critério atendê-los ou não, e, por mais honestamente intencionados que sejam, geralmente estão ocupados demais com o que devem levar em consideração para terem tempo para se preocupar com o que podem negligenciar impunemente.
   
Entretanto precisamos nos acautelar para não vermos em Stuart Mill um pensador democrata radical. Para ele, a tirania da maioria é tão odiosa quanto a da minoria. Isto porque ambas levariam à elaboração de leis baseadas em interesses classistas. Um bom sistema representativo é aquele que não permite "que qualquer interesse seccional se torne forte o suficiente para prevalecer contra a verdade, a justiça e todos os outros interesses seccionais juntos".

Mill colocou o individuo, e não a sociedade, no centro de sua filosofia utilitarista. O importante é que os indivíduos sejam livres para pensar e agir como queiram, sem interferência, mesmo que seus atos os prejudiquem. Todo indivíduo, escreveu Mill no ensaio Sobre a liberdade, é “soberano sobre seu próprio corpo e sua própria mente.” Suas ideias deram corpo ao liberalismo vitoriano, abrandando as ideias radicais que tinha conduzido a revoluções na Europa e na América e combinando-as com a noção de individuo livre da interferência da autoridade. Essa, para Mill, era a base para a justa governança e para o progresso social, importantes ideais vitorianos. Ele acreditava que, se a sociedade deixasse o individuo viver da forma que o fizesse feliz, isso lhe permitiria atingir todo o seu potencial. O que beneficiaria toda a sociedade, já que as realizações dos talentos isolados contribuem para o bem geral.

Durante sua vida, Mill foi reconhecido como filosofo importante, hoje, muitos o consideram o arquiteto do liberalismo vitoriano. Sua filosofia de inspiração utilitarista teve influencia direta no pensamento social, politico, filosófico e econômico até o século XX. A economia moderna foi moldada por varias interpretações de sua aplicação, do utilitarismo ao mercado livre, especialmente pelo economista britânico John Maynard Keynes. No campo da ética, filósofos como Bertrand Russel, Karl Popper, William James e John Rawls tomaram Mill como ponto de partida. 

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Tocqueville: Sobre a liberdade e a igualdade.


Ponderado: um pouco de cada. 
    
Falar de Tocqueville é falar da questão da liberdade e da igualdade e suas problemáticas, e por isso, segundo suas ideias, é necessário falar de democracia. Sem dúvida, os temas abordado por Tocqueville são temas herdado do jusnaturalismo e do contratualismo. Entretanto, a críticas constantes realizada por pensadores no século XIX, ao jusnaturalismo e contratualismo, leva-os a considerar tais temas como simples abstrações generalizantes. Tocqueville não escapa a essa moda de criticar, pois é dessa forma (como sendo abstrações generalizantes) que ele vai se referir às idéias de Rousseau e da filosofia política do século XVIII. Mas em Tocqueville o tema persiste, aliás, é para ele o ponto central do que poderia ser uma nova ciência política. Também é através da discussão da questão da liberdade e da igualdade que vai procurar explicar o desenvolvimento sociopolítico das várias realidades por ele estudadas.

Tocqueville trabalha com a especificidade de realidades politicas diferentes de sua época. Considerando tanto a história política e social de cada uma quanto as várias contradições do presente, tentando por vezes até realizar prognósticos para o futuro sobre as mesmas. Seria interessante lembrar aqui uma de suas previsões mais citadas no mundo contemporâneo: 

                             Há hoje no mundo dois grandes povos que, tendo partido de pontos diferentes, parecem avançar para o mesmo fim: esses são os russos e os americanos... Seu ponto de partida é diferente, seus caminhos são diferentes; no entanto, cada um deles parece convocado, por um desígnio secreto da Providência, a deter nas mãos, um dia, os destinos da metade do mundo.

Democracia: um processo universal
Seus estudos dizem respeito a realidades concretas que abrangem desde a descrição de hábitos e costumes de um povo e sua organização social até a explicação de sua estrutura de dominação, de suas instituições políticas e das relações do Estado com a sociedade civil. A preocupação fundamental é claramente expressa através de interpretações sociopolíticas, quando busca encontrar a possível coexistência harmônica entre um processo de desenvolvimento igualitário e a manutenção da liberdade. Tocqueville enfrenta assim, agora porém no nível das realidades concretas, o desafio lançado pelos contratualistas clássicos, ao tratarem a questão da liberdade e da igualdade como categorias não contraditórias de um mesmo todo.

Sua questão central será sempre: o que fazer para que o desenvolvimento da igualdade irrefreável não seja inibidor da liberdade, podendo por isso vir a destruí-la? Assim, com o eventual desenvolvimento de suas ideias fica evidente que abordar, portanto, a questão da liberdade e da igualdade, em Tocqueville, é para ele, fundamental falar de democracia.
Em primeiro lugar porque Tocqueville identifica, igualdade com democracia, em segundo lugar porque ao não trabalhar apenas com indagações abstratas procura entender a questão da liberdade e da igualdade, onde, acredita, elas não foram contraditórias. Isto é, onde um processo de igualização crescente se dava ao mesmo tempo em que preservava a liberdade, melhor dizendo, onde a democracia se realizava com liberdade. Para ele, isso estava acontecendo nos Estados Unidos da América, por volta de 1830.

Entretanto, Tocqueville afirma também que não está querendo apenas descrever a democracia americana, mas pretende, ao pesquisar a vida sociopolítica nos Estados Unidos, obter um conhecimento tão amplo do fenômeno democrático de tal forma que possa chegar a construir um conceito definidor de democracia. Tenderíamos também a concordar com a tese de que estaria antecipando a metodologia de Max Weber, ao tentar construir um "tipo ideal" de democracia. A maneira pela qual retira da realidade pesquisada fatos que lhe parecem significativos para a compreensão do fenômeno democrático, o cuidado com que os relaciona, buscando aí encontrar a racionalidade que lhes é específica, permite que se veja no seu estudo mais do que a democracia, tal como ela ocorria nos Estados Unidos, ou que pudesse vir a ocorrer na França. Como declara em carta a John Stuart Mill:

"Partindo de noções que me forneciam as sociedades americana e francesa, eu quis pintar os traços gerais das sociedades democráticas, das quais não existe ainda nenhum modelo completo".

Ao elaborar esse conceito de democracia,(colocando de modo que a liberdade não se oponha a igualdade) Tocqueville acaba por apresentá-la como um processo de caráter universal, ou seja,  democracia não seria um fenômeno que apenas surgiu e se desenvolveu nos Estados Unidos. Embora as condições nesse país tenham sido excepcionais para o seu desenvolvimento, o processo democrático, que ele define como um constante aumento da igualdade de condições, diz respeito a toda a humanidade. Como tal, a democracia é vista como inevitável e mesmo providencial, pois ela seria a própria vontade divina, realizando-se na história da humanidade. Assim, ela, segundo suas próprias palavras:

"é universal, durável e todos os acontecimentos, como todos os homens, servem ao seu desenvolvimento. Querer parar a democracia pareceria então lutar contra Deus".

Esse é, portanto, o eixo fundamental para se entender o significado de democracia para Tocqueville: a existência de seu processo igualitário, como se fosse uma lei necessária para se compreender a história da humanidade.   

No entanto, apesar do seu conceito de democracia ter sido construído a partir principalmente da realidade sociopolítica americana e Tocqueville considerar que era nos Estados Unidos que o processo democrático apresentava-se mais desenvolvido, isto não quer dizer que neste país a democracia já esteja plenamente realizada ou que o processo igualitário se repetirá da mesma forma, vindo a cumprir as mesmas etapas em outros lugares. Pelo contrário, para ele, cada país, cada nação terá seu próprio desenvolvimento democrático. Porém, sem dúvida, todas caminharão para uma situação cada vez mais ampla de igualdade de condições. Nessa diversidade de caminhos que as nações podem percorrer para a realização da democracia, o fator mais importante para defini-los é a ação política do seu povo.

Os perigosos desvios da igualdade
Uma das críticas mais correntes ao pensamento de Tocqueville diz respeito ao fato de que a democracia americana dessa época não só apresentava grandes diferenças de nível econômico entre seus habitantes, mas também diferenças raciais e culturais. Em suas explicações sobre o que definia como igualdade de condições, fica bem claro que está excluída a possibilidade de se compreender como tal apenas a igualdade econômica. É, no entanto, na igualdade cultural e política que está assentada sua idéia de que, no desenvolvimento do processo democrático, um povo tornar-se-á cada vez mais homogêneo.

Nos Estados Unidos, aliás, o grande problema por ele apontado para que o processo democrático pudesse se cumprir plenamente, era a existência de escravos. Sobretudo porque, por serem de raça diferente, a cor iria, mesmo após a libertação, permanecer como um fator de diferenciação e preconceito.

Tocqueville  fala também em  fator gerador de igualdade, entendendo por isto todo e qualquer elemento cultural que permita aos indivíduos considerarem-se como iguais. Assim, por exemplo, a expressão de uma idéia, um princípio, ou uma crença de que os homens são iguais permite desencadear o processo igualitário e também garante seu desenvolvimento. Isso é igualmente válido para uma lei que declare que os homens são iguais, ou para qualquer fenômeno igualitário que se realize num nível mais concreto. Assim sendo, democracia para Tocqueville está sempre associada a um processo igualitário que não poderá ser sustado, desenvolvendo-se também diversamente em diferentes povos, conforme suas variações culturais. Porém, será sobretudo a açäo política desse povo que irá definir se essa democracia será liberal ou tirânica.

Essa questão da possibilidade da democracia vir a ser uma tirania é a principal preocupação de Tocqueville, aparecendo claramente expressa em todas as suas obras, sendo também constantemente manifestada em sua atividade política. Pois, para ele, o processo de igualização crescente pode envolver desvios perigosos, que levem à perda da liberdade. Para evitá-los, é preciso conhecê-los e apontá-los, o que deve ser feito estudando-se a democracia e tendo-se uma ação política constante em defesa da liberdade.

Tocqueville vê no desenvolvimento democrático dos povos dois grandes perigos possíveis de acontecer: o primeiro seria o aparecimento de uma sociedade de massa, permitindo que se realizasse uma Tirania da Maioria; o segundo seria o surgimento de um Estado autoritário-despótico. No primeiro caso, o seu temor é que a cultura igualitária de uma maioria destrua as possibilidades de manifestação de minorias ou mesmo de indivíduos diferenciados. O desenvolvimento, portanto, de uma sociedade onde hábitos, valores etc., fossem de tal forma definidos por uma maioria que quaisquer atividades ou manifestação de idéias que escapassem ao que a massa da população acreditasse ser a normalidade, seriam impedidas de se realizar. É o que ele define, da mesma forma que Edmund Burke, como Tirania da Maioria. Tocqueville está sobretudo preocupado com a possibilidade de que nas democracias, as artes, a filosofia e mesmo as ciências sem imediata aplicação prática não encontrem campo para se desenvolver.

Todavia, curiosamente, investe também contra o individualismo, que chama de pernicioso. Individualismo que, para ele, é criado e alimentado pelo desenvolvimento do industrialismo capitalista, onde o interesse mais alto é o lucro, a riqueza. Pregando francamente a favor de uma moralidade que se confunda com a política, Tocqueville procura demonstrar que os cidadãos, à medida que se dedicam cada vez mais aos seus afazeres enriquecedores, vão concomitantemente abandonando seu interesse pelas coisas públicas. Dessa forma, acabam por facilmente deixar-se conduzir. Isto é, terminam por possibilitar, nesse descaso pelas atividades políticas, o estabelecimento de um Estado que aos poucos tomará para si todas as atividades. Esse Estado começará por decidir sozinho sobre todo assunto público, mas aos poucos irá também intervir nas liberdades fundamentais. É assim que ele vê, no seio da democracia, surgir o germe de um Estado autoritário e mesmo tirânico ou despótico. Em suma Tocquevile não esta contra o individualismo em si, mas nos efeitos que esta ação acarretara, possivelmente culminando em um Estado despótico.  

Ação politica e instituições políticas
Contudo, apesar de esses perigos aparecerem como as piores ameaças para o desenvolvimento da democracia no mundo moderno, Tocqueville procura mostrar como eles podem ser evitados. Se, por um lado, a atividade política dos cidadãos, aliás a mais importante, pode impedir que tais fenômenos ocorram, por outro, a existência e a manutenção de certas instituições podem dificultar bastante o surgimento de um Estado autoritário e mesmo de uma sociedade massificada.

Sem dúvida, a fraqueza do exercício da cidadania permite que se aceite mais facilmente o desenvolvimento da centralização administrativa, o que normalmente leva à maior concentração de poder do Estado. Assim, se a cidadania que não se ocupa de coisas públicas se aliar a um crescente aumento do poder do Estado, chegar-se-á facilmente a um Estado despótico. Um Estado que comandará um povo massificado, apenas preocupado com suas pequenas atividades particulares de caráter enriquecedor para os mais abastados ou apenas de sobrevivência para os mais pobres.

Mas a existência de instituições que desenvolvam a descentralização administrativa ou que levem os cidadãos a se associarem para defender os seus direitos obriga de alguma forma a maior participação por parte dos nacionais. Igualmente a permanência de uma Constituição e de leis que possam garantir a manutenção das liberdades fundamentais ajuda a convivência do processo igualitário com a liberdade. Isto é, a democracia não precisa apenas ser igualitária, ela pode permitir aos homens serem livres. Pode-se mesmo, conforme Tocqueville, "imaginar um ponto extremo onde liberdade e igualdade se toquem e se confundam", pois é na própria democracia que encontramos a solução para os seus males. Ainda citando Tocqueville:

“É a própria igualdade que torna os homens independentes uns dos outros, que os faz contrair o hábito e o gosto de seguir apenas a sua vontade em suas ações particulares, e esta inteira independência de que gozam, em relação a seus iguais, os predispõe a considerar com descontentamento toda autoridade e lhes sugere logo a idéia e,o amor da liberdade política.”

Portanto, embora as instituições de caráter liberal possam ajudar a manutenção das liberdades fundamentais, é na ação política dos cidadãos que está posta a garantia de sua real existência na democracia.

Diferente da igualdade, que nada impede de ir se realizando na história da humanidade, a liberdade, para Tocqueville, é extremamente frágil e por isso mesmo precisa ser querida, protegida e é mesmo necessário lutar por ela para que não se venha perdê-la. Em nenhum momento pode-se abandonar a defesa da liberdade.

"Para viver livre é necessário habituar-se a uma existência plena de agitação, de movimento, de perigo; velar sem cessar e lançar a todo momento um olhar inquieto em torno de si: este é o preço da liberdade."

Esta visão da idéia de liberdade, apresentada por Tocqueville e sem dúvida inspirada na famosa frase de Thomas Jefferson: "O preço da liberdade é a eterna vigilância",  demonstra bem como a necessidade de uma prática política constante era condição primeira para que a liberdade fosse preservada.

Para Tocqueville, embora seja necessário que se anuncie a liberdade como um direito, que se a formalize ou institucionalize através de leis e instituições, essas medidas sozinhas não seriam suficientes para que se garantisse a liberdade. Isso porque o verdadeiro sustentáculo da liberdade está posto na ação política dos cidadãos e na sua participação nos negócios públicos. O que pode, evidentemente, ser incentivado através da implantação de instituições tais como a descentralização administrativa, a organização de associações políticas que tenham como finalidade a defesa da cidadania ou mesmo a existência de grandes partidos. Enfim, é sem dúvida de máxima importância que se possa criar e desenvolver organizações livres que garantam a manutenção do espaço da palavra e da ação.

O grande drama tocquevilliano é, portanto, buscar a solução sobre a questão da preservação da liberdade na igualdade. Pois, por um lado, o processo igualitário é inevitável e apresenta perigos constantes de ameaça à liberdade, por outro, a liberdade, mesmo a que já tenha sido conquistada, é frágil e a qualquer momento pode ser destruída. Considerando-se ainda que, para ele, a igualdade sem liberdade é insuportável, suas obras, tanto quanto suas atividades políticas, são uma luta constante para que a democracia, sobretudo a francesa, fosse construída preservando-se a liberdade.

Um manifesto liberal
Sua visão da política passa necessariamente pelo dilema democrático da harmonia da igualdade com a liberdade e por acreditar firmemente que a solução só se dá na medida em que os cidadãos têm de estar sempre alerta e ativos na defesa da liberdade.

Suas atividades políticas, desde que se elege como deputado pela primeira vez, em 1839, são extremamente coerentes com suas idéias. Como representante no Congresso, ou como constituinte em 1848, procura sempre defender posições que pudessem favorecer a liberdade dos cidadãos e a grandeza da nação francesa, que julga necessária para que essa liberdade possa ser garantida. Assim, defende o ensino livre, a liberdade de imprensa, a descentralização, a libertação dos escravos nas colônias etc.

Mas, a coerência de suas idéias e suas análises da realidade apontam-lhe como é preciso que a França mantenha a conquista da Argélia, necessária estrategicamente para sua grandeza e independência. Pois não se pode ser cidadão livre em país dominado ou muito fraco. Também, combate os vários socialismos que despontavam, por vê-los como difusores de idéias políticas onde a preocupação com o igualitarismo está presente, mas não a defesa da liberdade. Sobretudo, porque ele via nas posições socialistas uma defesa do aumento do poder do Estado. Portanto sua condenação do socialismo parte dessa visão de que, para os socialistas, um Estado intervencionista agigantado deveria ser o único responsável pela direção política da nação. Isso significa, para Tocqueville, a criação de um Estado despótico, no qual a liberdade dos cidadãos desaparecerá.

Sua esperança de que a França pudesse construir uma democracia com liberdade não o abandona, mesmo durante a Revoluçäo de 48. Como constituinte eleito, procura discutir todos os grandes temas que possam, no equilíbrio entre os poderes do Estado e os direitos da cidadania, privilegiar os primeiros somente quando os considera absolutamente necessários para a garantia das liberdades fundamentais. Assim é que defende a educação como obrigatória, e o Estado, neste caso, deverá garantir que assim possa ser. Mas o ensino deve ser livre, o Estado não deve intervir na maneira pela qual as diferentes escolas decidem sobre seus ensinamentos.

O único problema de Tocqueville é que nem todos os países culminarão em uma democracia perfeita e ideal, e nem as pessoas são iguais, nem economicamente e nem culturalmente, apesar de ter feito pesquisas empíricas para chegar a essa conclusão, seu trabalho como teoria, no final seque uma epistemologia propriamente metafisica. 

domingo, 22 de julho de 2012

Kant: O Hiperativo Categórico, A Moral Universal.


Kant: A liberdade, o individuo e a moral.

Conta-se que as donas de casa de Königsberg, na Prússia, acertavam seus relógios pela passagem de Kant pelas ruas. Verdade ou não, a anedota descreve o homem. Em sua longa vida, Kant jamais quebrou a rotina do seu trabalho como professor da universidade local, e jamais afastou-se da sua pequena cidade, onde nasceu em 1724 e onde morreu, solteiro, aos 79 anos. Não há, pois, muito o que dizer sobre a vida do filósofo. Costuma-se fazer referência à sua origem modesta - seu pai era seleiro - e ao ambiente de tranqüila austeridade e disciplina do protestantismo pietista, no qual foi educado. Desde cedo aprendeu a desdenhar a dogmática religiosa e a cultivar a integridade pessoal como norma suprema de conduta. É bem possível que esses primeiros anos tenham-no influenciado na vida e na obra. Sua vida foi regrada e uniforme. Sua filosofia moral é uma celebração da dignidade individual.

A filosofia da moral e a dignidade do individuo.
O conhecimento racional, diz Kant, versa sobre objetos ou sobre suas próprias leis. Há dois gêneros de objetos: a natureza, que é o objeto da física, (mundo empírico) e a liberdade, que é o objeto da filosofia moral ou ética. (mundo ideal, no qual, segundo Kant, é tangível a partir da razão). O conhecimento das leis da própria razão, por sua vez, constitui a lógica; esse conhecimento é puramente formal, isto é, independente da experiência.

A física e a ética lidam com o mundo objetivo. Mas o conhecimento empírico nesses dois grandes ramos da filosofia tem seu fundamento em corpos de princípios puros, que a razão estabelece previamente a qualquer experiência; esses princípios, definidos a priori, são a condição de possibilidade de qualquer experiência racional (princípios, no quais, antecedem o mundo empírico, e so a partir deles é possível fundamentar o mundo empírico). À ciência desses princípios Kant denomina metafisica.

O princípio segundo o qual "todo evento tem uma causa", por exemplo, não pode ser provado (embora possa ser confirmado) pela experiência; mas, sem ele, a experiência da natureza, e portanto a ciência da física, seria impossível. Da mesma forma, a metafísica da moral estabelece que, embora não seja possível provar que o ser humano, enquanto ser racional, é livre, porém sem a idéia de liberdade, a experiência e o conhecimento do mundo moral seriam impossíveis.

A metafísica da moral, como filosofia moral pura, é dividida em duas partes. A primeira diz respeito à justiça; a segunda, à virtude. Ambas tratam das leis da liberdade, por oposição às leis da natureza; A legalidade, por exemplo, as leis coercitivas de uma sociedade, se distingue da moralidade pelo tipo de motivo pelo qual as normas são cumpridas. A mera conformidade da ação à norma caracteriza a legalidade; para que a ação seja moral, é preciso que a ação se realize pelo dever. As leis jurídicas são externas ao indivíduo e podem coagi-lo ao seu cumprimento (imposta pelo Estado, por isso externa, a moralidade é um lei interna ao individuo e universal). As leis morais, tornando obrigatórias certas ações, fazem ao mesmo  tempo da obrigação o móbil do seu cumprimento.

O binômio interioridade/exterioridade, próprio do jusnaturalismo e da ilustração implica, no plano político, a delimitação do poder público e a afirmação vigorosa do indivíduo face a ele. Trata-se de eliminar do pensamento jurídico a exigência de conformidade interna às leis do Estado, e de definir a esfera inviolável da consciência individual, por meio da moralidade. "A chave da filosofia moral e política de Kant", escreveu um comentador, "é a sua concepção da dignidade do indivíduo". A dignidade (valor intrínseco, sem equivalente ou preço) do homem está em que, como ser racional, não obedece senão às leis que ele próprio estabeleceu. O homem "é fim de si mesmo". Tal é o fundamento do seu direito inato à liberdade, e de todos os demais direitos políticos, bem como, em última análise, dos imperativos morais da república e da paz.

Toda a filosofia kantiana do direito, da política e da história repousa sobre essa concepção dos homens como seres morais: eles devem organizar-se segundo o direito, adotar a forma republicana de governo e estabelecer a paz internacional, porque tais são comandos a priori da razão, e não porque sejam úteis. Cabe, portanto, neste ponto, uma breve referência à doutrina do imperativo categórico, que é a pedra angular de todo o edifício da filosofia moral de Kant.

O imperativo categórico
A norma moral tem a forma de um imperativo categórico. O comando nela contido assinala a relação entre um dever ser que a razão define objetivamente; O comando moral é categórico porque as ações a ele conformes são objetivamente necessárias, independentemente da sua finalidade material ou substantiva particular.

Nisso reside sua diferença com respeito aos imperativos hipotéticos, que definem a necessidade de uma certa ação para a consecução de um objetivo desejado pelo indivíduo. A necessidade objetiva do comando categórico faz referência a que o dever moral vale para todos os homens enquanto seres racionais; o móbil, ou princípio subjetivo da ação, que pode variar segundo a situação ou o indivíduo, no qual não é possível determina o valor moral da ação.

A conduta moral, portanto, é vinculada a uma norma universal. O critério para a definição da boa conduta é formal: a moralidade da ação consiste precisamente na sua universalidade segundo a razão (que implica a desejabilidade da sua universalização). Assim se compreende a fórmula kantiana da Lei Universal, ou imperativo categórico: "Aja sempre em conformidade com o princípio subjetivo, tal que, para você, ele deva ao mesmo tempo transformar-se em lei universal" (desde que guiado pelo principio universal da razão). Os motivos materiais de nossas ações serão, pois, aceitos ou rejeitados segundo possamos ou não desejar que se constituam em leis internamente vinculantes (moral individual).

O imperativo "não mentirás", por exemplo, não deve ser obedecido em razão das consequências do seu cumprimento, pode-se, aliás, imaginar situações em que seja vantajoso mentir, mas não pode ser obedecido em razão das consequências justamente porque não poderíamos racionalmente desejar que a mentira, e não a verdade, se transformasse em norma geral de conduta. Ou seja, a fórmula geral de moralidade enunciada acima não decorre da observação empírica da natureza humana; ela é um enunciado a priori da razão. Dela se deduz uma  outra idéia: a de que, sendo universais, as normas morais que nos conduzem são elaboradas por nós mesmos enquanto seres racionais. Ou seja: a humanidade, e cada um de nós, é um fim em si mesmo. Retoma-se o argumento já esboçado antes sobre a dignidade do indivíduo. Se o agente racional é verdadeiramente um fim em si mesmo, ele deve ser o autor das leis que observa, e é isso que constitui seu supremo valor. 

Antes, porém, cabe um breve comentário sobre o contexto polêmico dessa doutrina. Kant opõe-se explicitamente ao utilitarismo como doutrina moral em que as leis reguladoras do comportamento são instrumentais com respeito aos valores materiais das ações humanas, ou com respeito ao objetivo universal de "felicidade". Se os valores são associados às inclinações subjetivas, sustenta Kant, ainda que sob a forma genérica de "felicidade", eles não são (por isso mesmo) definidos pela razão, e, se os homens deixam-se orientar por eles, não são livres. Só a conduta racionalmente fundada é compatível com a dignidade humana. Além disso, a moral utilitarista é incompatível com a justiça (sobre a qual se falará abaixo). A definição empírica, é portanto arbitrária, do que seja bom ou mau para os homens, leva a uma situação em que aqueles que têm o poder de impor tal definição oprimem os que dela discordam. Compreende-se também que, definido o que é "bom" e o que é "mau" por aqueles que têm o poder de fazê-lo, tudo o mais, e em particular a ordem jurídica, torna-se instrumento dos valores adotados. Ora, a constituição jurídica, como veremos, é ela mesma um imperativo moral, e portanto um valor em si.

A liberdade externa e a autonomia
A liberdade, em Kant, é a liberdade de agir segundo leis. As leis descrevem relações de causa e efeito. Portanto os homens são livres quando causados a agir. Como se resolve o aparente paradoxo? Nos seres racionais a causa das ações é o seu próprio arbítrio. Num primeiro sentido, portanto, a liberdade é a ausência de determinações externas do comportamento. Esse é o conceito negativo de liberdade. Daí decorre uma definição "mais rica e mais fértil". Se as ações são causadas, obedecem a leis (que são "as condições limitantes da liberdade de ação"). A liberdade da vontade não é determinada por leis da natureza; mas nem por isso escapam ao império de um certo tipo de leis, se assim não fosse, as ações humanas seriam não causadas, e o conceito de "liberdade da vontade" seria contraditório consigo mesmo. A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só podem ser auto impostas. Esse é o conceito positivo de liberdade; ele designa a liberdade como autonomia, ou a propriedade dos seres racionais de legislarem para si próprios. A legislação racional é por sua própria natureza uma legislação universal. Ora, as leis universais são as leis morais. Liberdade e moralidade, política e universalidade são indissociáveis.

As observações feitas até aqui tratam, ainda que de modo sumário, dos fundamentos da filosofia moral de Kant, e introduzem o exame da sua doutrina do direito. Esse exame, por sua vez, é indispensável para a compreensão do conceito kantiano da transição do estado de natureza à sociedade civil.

A doutrina do direito
Normalmente, o direito é "o corpo  daquelas leis susceptíveis de tornar-se externas, isto é, externamente promulgadas". Toda e qualquer lei impõe deveres; mas o cumprimento desses deveres pode ou não ser coativamente exigido. No primeiro caso, trata-se de leis morais; (não são coativamente exigidas) no segundo, de normas jurídicas (são coativamente exigidas). Nesse argumento, a moral abrange o direito, conforme há leis que há a exigência de serem cumpridas ainda que não necessariamente sancionadas, o âmbito da moral é maior do que das leis positivas. (lembre-se que a moral de Kant é pautada na razão).

O fundamento de ambos os tipos de leis é a autonomia da vontade, e a referência a esse fundamento moral é constitutiva do direito. Mas isso não autoriza a dizer que toda lei positiva deva vincular-se internamente aos sujeitos (ou seja, nem toda lei positiva deve ser pautada em uma lei moral). Uma coisa não implica a outra. Idealmente, pode-se supor uma situação em que as duas esferas se superponham, e em que, portanto, a conformidade à lei positiva manifeste externamente a conformidade interna ao dever que ela explicita. Portanto, Kant relata que o controle imperfeito da razão sobre as paixões impede que isso ocorra. Tal é a irremovível condição humana. Quanto aos deveres morais, os homens são responsáveis perante si mesmos; na esfera jurídica, são responsáveis perante os demais. A liberdade moral se alcança pela eliminação dos desejos e inclinações que impedem a adequação da conduta aos comandos da razão; a liberdade jurídica consiste em não ser impedido externamente de exercer seu próprio arbítrio (vontade).

Como não podia deixar de ser, Kant não está interessado no direito positivo, mas na ideia, ou no conceito universal a priori do direito. O objeto da reflexão são as relações interpessoais, ou a sociabilidade. A questão é esta: qual é o principio da legislação que ordena as relações interpessoais segundo a justiça? Se a justiça é o "conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser unido ao arbítrio de outro segundo uma lei universal de liberdade", o princípio, ou a "lei universal do direito", é o seguinte: "Age externamente de tal maneira que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal". A relação jurídica diz respeito, antes de mais nada, à relação externa com o outro. Essa relação envolve dois sujeitos capazes e responsáveis, cujas pretensões sobre um objeto devem ser juridicamente coordenadas.

O móbil da ação de cada um é a pretensão externamente manifestada; no ato jurídico, não interessa saber qual é a pretensão interna de cada um. Enfim, declaradas as pretensões, a justiça da transação não se avalia pelos benefícios que cada um tira dela. Não tem sentido, por exemplo, dizer que tal operação de compra e venda "foi injusta porque o preço foi muito alto". O que importa é a forma do ato jurídico: a conformidade a uma norma que se aplica a todos, e cujo princípio (ou juridicidade) está em garantir aos dois contratantes o livre uso dos seus arbítrios.

Convém atentar para as implicações políticas gerais da doutrina kantiana do direito. Em outras concepções, o direito subordina-se a certos valores materiais: a ordem pública (como em Hobbes, ou nas várias modalidades do pensamento autoritário), ou a igualdade (como, por exemplo, nas concepções que erigem a "justiça social", as reformas de estrutura ou o bem-estar social como valores supremos da ação legislativa do Estado). Segundo Kant, a sociedade se organiza conforme a justiça, quando, nela, cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto que não interfira na liberdade dos demais.  Kant é possivelmente o mais sólido e radical teórico do liberalismo.

As normas jurídicas são universais; elas obrigam a todos, independentemente de condições de nascimento, riqueza etc. Quem viola a liberdade de outrem ofende a todos os demais, e por todos será coagido a conformar-se à lei e compensar os danos causados. A coerção é parte integrante do direito; a liberdade, paradoxalmente, requer a coerção. Duas são as condições para o uso justo da coerção. A primeira é a seguinte: "Se um certo exercício da liberdade é um obstáculo à liberdade [de outrem] segundo as leis universais [isto é, se é injusto], então o uso da coerção para opor-se a ele é justo". A segunda decorre da universalidade das leis violadas: a coerção só é justa quando exercida pela vontade geral do povo unido numa sociedade civil.

Direito privado e direito público
Como jusnaturalista, Kant distingue entre a lei natural e a lei positiva (segundo a fonte; individuo ou estado) e entre direitos inatos e adquiridos (segundo sua exigibilidade dependa ou não do seu acolhimento na lei positiva). As leis naturais se deduzem de princípios a priori; elas não requerem promulgação pública e constituem o direito privado. As segundas expressam a vontade do legislador,  são promulgadas e constituem o direito público. Ou seja, o direito privado para Kant, é aquele direito que o individuo concebe como certo segundo seus próprios valores. E o Direito publico é aquele direito vigente em uma determinada sociedade tanto o direito civil, como constitucional, penal e etc.

Na teoria de Kant NÃO se pode deduzir da distinção entre as fontes do direito natural e do direito positivo que esses dois ramos constituem corpos jurídicos dissociados um do outro, e menos ainda que Kant sustenta, no direito público, uma tese do positivismo jurídico. A vontade do legislador, em Kant, não é o arbítrio do poder estatal, mas a vontade geral do povo unido na sociedade civil. Embora tenham fontes diferentes, portanto, o direito privado e o direito público têm o mesmo fundamento: a autonomia da vontade. Por isso mesmo, as várias partes da filosofia moral de Kant possuem uma "forma arquitetônica"; e (as constituem um "sistema". O direito público, ou positivo, não é idêntico ao direito natural; mas é necessário pressupor a existência de um nexo sistemático entre eles, através do qual o princípio comum da justiça como liberdade opera, em grau maior ou menor, na esfera do direito positivo e constitui, dessa forma, a sua juridicidade.

A distinção kantiana entre direito privado e público ressalta a existência, no estado de natureza, de um certo tipo de sociabilidade natural derivada da racionalidade humana: "O estado de natureza não é oposto e contrastado ao estado de sociedade, mas à sociedade civil, porque no estado de natureza pode haver uma sociedade, mas não uma sociedade civil". (ou seja, antes de haver o Estado organizado como tal, havia uma sociedade no estado de natureza, advinda da sociabilidade natural dos homens);  A armação sistemática do argumento subseqüente pressupõe essa distinção.

Do contrato originário.
O ponto de partida para intender sobre o contrato originário é a distinção entre a posse física e a posse inteligível. A posse jurídica corresponde a esta última (posse inteligível): ter direito a um objeto significa que o uso do  que é meu por outra pessoa, mesmo quando eu não o esteja utilizando, constitui uma ofensa. Por outro lado a posse empírica, por sua vez, é fortuita e baseada na vontade unilateral do possuidor.

Como se observa, a posse jurídica "faz abstração de todas as condições da posse empírica no espaço e no tempo". Ela é puramente racional. Ora, a possibilidade de proibir legitimamente o uso do meu objeto por parte de todos os demais, mesmo quando não o utilizo, pressupõe, necessariamente, o acordo de todos os demais. É necessário, portanto, pensar que, originalmente, todos têm a posse coletiva de todos os bens, e que a base legal da posse individual é o ato da vontade coletiva que a autoriza.

Tudo isso nos ensina que no estado de natureza os homens não se relacionam apenas segundo a força de cada um. Se assim fosse, não haveria posse jurídica. Contudo, os homens são dotados de razão e de paixões. O estado de natureza é instável: "Não há nele um juiz com competência para decidir com força de lei as controvérsias sobre direitos". Por essa razão, a posse de jure no estado de natureza é sempre provisória. Para que seja definitiva, ou peremptória, deve ser garantida por uma autoridade superior. Ainda que na obra de Kant não explicito um contrato social, podemos supor, que essas ideias faz referencias ao mesmo.  

O direito público é o direito positivo, emanado do legislador para a regulação dos negócios privados (justiça comutativa) e das relações entre a autoridade pública e os cidadãos (justiça distributiva). Os indivíduos que se relacionam em conformidade com leis publicamente promulgadas constituem uma sociedade civil (status civilis); vista como um todo em relação aos membros individuais, a sociedade civil se denomina Estado. Os termos "sociedade civil" e "Estado", portanto, referem-se ao mesmo objeto, considerado de pontos de vista distintos.

A transição à sociedade civil é um dever universal e objetivo, porque decorre de uma idéia a priori da razão. É certo que os homens no estado de natureza tendem a hostilizar-se; mas a passagem de um estado a outro não obedece a motivos de utilidade. Trata-se de um imperativo moral: o estado civil é a realização da idéia de liberdade tanto no sentido negativo como positivo.

Pressupondo-se necessariamente a juridicidade provisória do estado natural, o ato pelo qual se "constitui" o Estado é o contrato originário, concebido como idéia a priori da razão: sem essa idéia, não se poderia pensar um legislador encarregado de zelar pelo bem comum, nem cidadãos que se submetem voluntariamente às leis vigentes. Em outras palavras, "somente a idéia daquele ato permite-nos conceber a legitimidade do Estado". É irrelevante, portanto, saber se tal contrato foi ou não realizado de fato na história. Aliás, para sermos precisos, contrato originário não "constitui" a sociedade; ele a explica tal como ela deve ser. A idéia do contrato remete não à origem mas ao padrão racional da sociedade, isto é, remete a algo fora da história, e não no passado. Kant é claro sobre esse ponto na seguinte passagem: "[O contrato originário] não é o princípio que estabelece o Estado; antes, é o princípio do governo político e contém o ideal da legislação, da administração e da justiça pública legal".

A negação do direito de resistência ou de revolução
Esse procedimento metodológico tem desdobramentos teóricos e políticos muito importantes. Kant afirma que a base da legitimidade é o consenso; mas o consenso é entendido como suposto teórico necessário. Com isso, a latitude de interpretação do fenômeno numa situação concreta qualquer é infinita. Na exposição do argumento, não se faz sequer a distinção entre consenso explícito e tácito, como em Locke; se há Estado, há consenso. Na mesma ordem de considerações, se o contrato é uma idéia, todos os Estados existentes nela se fundamentam, por imperfeitos que sejam; dela procuram aproximar-se e dela participam. Em conseqüência, os cidadãos não podem opor-se aos seus governantes em qualquer hipótese. A teoria kantiana da obrigação política, vinculada à sua concepção apriorística do contrato, estabelece o dever de obediência às leis vigentes, ainda que elas sejam injustas. Nisso, ele difere de Hobbes, para quem as leis do soberano são sempre justas, e por isso devem ser respeitadas, e de Locke, que admite o direito de resistência no caso de leis injustas.

Kant retorna a essa questão em várias passagens, não sem uma certa vacilação e flutuação do argumento. Aqui ele declara: "A mais leve tentativa [de rebelar-se contra o chefe do Estado] é alta traição, e a um traidor dessa espécie  não pode ser aplicada pena menor que a morte". Ali, ele admite que o destronamento do monarca pode ser escusável, embora não permissível: o argumento básico da recusa do direito de revolução, contudo, persiste, e apresenta-se em três versões.

A primeira é a seguinte: "Para que o povo possa julgar a suprema autoridade política que tem a força da lei, deve ser considerado como já unificado sob a vontade legislativa geral; portanto" - em virtude do pacto originário sem o qual não se poderia conceber o povo dessa maneira - "seu julgamento não poderia diferir do julgamento do presente chefe de Estado". Numa interpretação menos rígida, poderíamos dizer que, se há Estado, ele contém um princípio de ordem segundo leis, e, por pior que seja, deve ser resguardado, porque representa um progresso em direção ao Estado ideal.

A segunda versão está na "Paz perpétua". Se os direitos do povo são violados, não há injustiça em depor o soberano. Mas se o povo fracassa é punido, também não pode reclamar de injustiça. A questão, em termos dos fundamentos da justiça, decide-se como se segue. Nenhuma Constituição pode outorgar ao povo o direito à revolta, sob pena de contradizer-se a si própria. Portanto, a revolta é ilegal. Isso se demonstra como se segue: se a revolta ocorrer, ela tem de ser secretamente preparada. O chefe do Estado, ao contrário, afirma publicamente seu poder supremo, incontrastável; tal é a sua obrigação, porque ele deve comandar o povo contra agressões externas. Ora, o princípio da publicidade é constitutivo do direito público, e, por conseguinte, na situação de revolta, confrontam-se uma vontade particular e uma vontade geral. O sucesso eventual de uma revolta apenas demonstra que a necessária suposição de que o soberano detinha, efetivamente, o poder supremo era falsa, e a questão da justiça não se coloca.

A terceira versão do argumento encontra-se em "Sobre o ditado popular..." [A idéia do contrato originário] obriga todo legislador a considerar suas leis como podendo ter sido emanadas da vontade coletiva de todo o povo, e a presumir que todo sujeito, enquanto ele deseja ser um cidadão, contribuiu por seu voto à formação da vontade legislativa. Tal é a pedra de toque da legitimidade de toda lei pública. Se, com efeito, essa lei é tal que seja impossivel que todo o povo possa dar a ela seu assentimento (se, por exemplo, ela decreta que uma classe determinada de sujeitos deve ter hereditariamente o privilégio da nobreza), essa lei não é justa. Mas se for simplesmente possível que o povo a aprove, então temos o dever de considerá-la justa.

A possibilidade ou impossibilidade de que uma lei seja justa se avalia por referência aos princípios racionais do direito, e não à efetiva manifestação popular sobre a questão. O exemplo que nos dá Kant no mesmo ensaio ilustra o ponto. No caso de decretação de um imposto de guerra proporcional a todos, o povo não pode opor-se sob argumento de que a guerra não lhe parece indispensável, porque "näo lhe compete emitir juízo sobre a questão". Mas se o imposto recair sobre alguns e não sobre outros, a lei é injusta e pode ser contestada.

O Estado liberal
Kant, como Rousseau, recusa o dilema hobbesiano: “liberdade  sem  paz  ou  paz mediante submissão ao Estado”. Ambos compatibilizam teoricamente os dois termos (liberdade e Estado) mediante o conceito de autonomia: as leis do soberano são as leis que nos demos a nós próprios. Mas há entre os dois autores uma diferença fundamental. Rousseau formula uma certa versão de um Estado democrático (visto que o poder vem do povo em geral); Kant é um teórico do liberalismo (o poder, parte, da liberdade individual). Kant concebe o Estado como um instrumento (necessário) da liberdade de sujeitos individuais. Em Kant, a autonomia deduz-se da liberdade negativa, e a preserva e garante. A liberdade como não impedimento no estado de natureza é precária, e requer o exercício da autonomia. A reconciliação dos homens consigo mesmos enquanto seres livres necessita a promulgação pública das leis universais, que manifesta a disposição de todos e de cada um de viver em liberdade.

Essa construção teórica tem notáveis implicações políticas, já esboçadas acima. No sistema kantiano, nega-se às autoridades públicas o dever e o direito de promover a felicidade, o bem-estar ou, de modo geral, os objetivos materiais da vida individual ou social. A razão disso é a seguinte: a legislação deve assentar sobre princípios universais e estáveis, ao passo que as preferências subjetivas são variáveis de indivíduo a indivíduo e cambiantes no tempo. Além disso, a ninguém é dado o direito de prescrever a outrem a receita da sua felicidade. O que deve, então, fazer o Estado? Ao Estado incumbe promover o bem público; o bem público é a manutenção da juridicidade das relações interpessoais. Nas palavras de Kant: A máxima salus publica, suprema civitatis lex est permanece em sua validez imutável e em sua autoridade; mas o bem público, que deve ser atendido acima de tudo, é precisamente a constituição legal que garante a cada um sua liberdade através da lei. Com isso, continua lícito a cada um buscar sua felicidade como lhe aprouver, sempre que não viole a liberdade geral em conformidade com a lei e, portanto, o direito dos outros consorciados. Essa passagem expande e esclarece a fórmula adotada por Kant nos Elementos:  "As leis do direito público referem-se apenas à forma jurídica da convivência entre os homens".

Somente em um caso o Estado é autorizado a adotar políticas de conteúdo subjetivo. A autoridade pública deve prover a subsistência dos que não podem viver por seus próprios meios (porque a sua própria existência depende de que eles façam parte da sociedade, dela recebendo proteção e cuidado). Se, fora disso, "o Estado estabeleceu leis que visam diretamente a felicidade [o bem-estar dos cidadãos, da população etc.], isso não se faz a título de estabelecimento de uma constituição civil, mas como meio para garantir o Estado jurídico para que o povo exista como república". Compreende-se que, não sendo um dever constitutivo do Estado, essas medidas dependem exclusivamente do julgamento pessoal (prudência) do governante.

A dialética kantiana da história
Importa reter aqui o significado geral do pensamento kantiano sobre o progresso humano: a política, como atividade de elaboração e aperfeiçoamento constitucional, é um processo de racionalização das relações entre os homens e entre os Estados. Mas o progresso não é um processo rápido, nem indolor. Ele é lento, enganoso e sobretudo contraditório. A humanidade avança por efeito da contraditoriedade das opiniões, dos interesses particulares e dos interesses nacionais.

As opiniões devem entrechocar-se livremente. Kant defende esse ponto de vista em "O que é a ilustração?". Mas o que significa exatamente isso? Desde logo, é preciso não nos enganarmos com o que se poderia denominar "a ilusão revolucionária". O povo rebelado, sob a liderança de políticos ilustrados, pode derrubar um tirano, mas isso não altera seu nível cultural. Em conseqüência, "novos preconceitos substituirão os antigos para atrelar as grandes massas ignorantes". O verdadeiro caminho é a liberdade, e, concretamente, a liberdade de opinião e de imprensa. O soberano não é divino, e pode errar; é necessário, portanto, conceder aos cidadãos, com o beneplácito do próprio soberano, o direito de emitir publicamente suas opiniões e a liberdade de escrever. O alargamento do debate público é condição do progresso.

Outra mola do progresso é o conflito de interesses individuais, bem como de interesses nacionais. Aqui, o progresso aparece como mera resultante não intencional da interação humana; ele manifesta uma "finalidade secreta da natureza". Sem o "natural antagonismo entre os homens", escreve Kant, "todas as excelentes capacidades naturais da humanidade permaneceriam para sempre adormecidas, agradeçamos, portanto, à natureza, pela incompatibilidade, pela cruel vaidade competitiva, pelo insaciável desejo de posse e dominação (próprios dos homens)". Da mesma forma, o progresso em direção à paz internacional contém em si o momento necessário da guerra: são as guerras que, "depois de devastações, revoluções e até a completa exaustão, conduzem [os homens] àquilo que a razão poderia ter ensinado a eles desde o início".

O entendimento kantiano do "antagonismo natural" é bastante peculiar no campo do jusnaturalismo. Em Hobbes, Rousseau e Locke, o antagonismo tem signo negativo, seja porque é a antítese da sociabilidade, seja porque não traz nada de bom. O antagonismo kantiano não é incompatível com a sociabilidade natural nem com a sociedade civil - nisso ele se diferencia dos dois primeiros autores citados. (em Locker, não há antagonismo, apenas pequenas contradições entre interesse na sociedade, na qual é sanada com o advento do Estado) Ademais - e nisso ele se diferencia dos três -, ele atribui ao antagonismo humano uma função positiva:  ou seja, a competição e a guerra não se relacionam à justiça e à paz como termos imediatamente antitéticos, mas como mediações do progresso. Não seria excessivo descobrir no pensamento kantiano sobre a história uma espécie de "dialética da ilustração", em que a razão progride não pelo confronto da razão consigo própria, como em Hegel, mas pela negatividade persistente das paixões humanas. Note-se, enfim, que a dedução kantiana de padrões ideais - que na política em particular funcionam como idéias reguladoras que se impõem praticamente aos governantes - não parece conduzir a afirmação de que eles se realizarão fatal e concretamente na história. (Parece-me que há uma certa separação ideológica em Kant em relação a politica e a historia, aqui me parece que ela já tinha lido David Hume e mudado de ideia, rsrs*)

A filosofia de Kant sobre os móveis do progresso é um elogio da divergência e da competição. O homem kantiano se assemelha ao homem que, em Adam Smith, por exemplo, visa maximizar seu lucro no mercado e, ao fazê-lo, promove a prosperidade geral. (ainda que para certos teóricos tal fato é negativo, a soberba e a ganancia). Entretanto, a natureza, para um (Kant), o mercado, para outro (Adam Smith), desempenham ambos a função de "mão invisível do progresso". Desse ponto de vista, Kant é o mais "moderno" dos pensadores liberais clássicos, ele näo apenas declara a soberania do indivíduo, mas também legitima filosoficamente o indivíduo empreendedor.

Não se trata, é claro, para o autor, de celebrar o interesse particular enquanto tal, mas de reconciliar os particularismos em choque com a idéia de uma sociedade justa. No plano da teoria do direito, a sociedade justa (a sociedade regulada por leis emanadas da vontade geral) é pressuposta, e as ações individuais manifestam apenas a subjetividade de cada um no exercício de sua liberdade negativa. Já no plano da teoria da história, a sociedade ideal emerge progressivamente das ações individuais enquanto exercício da liberdade natural, pré-contratual, a qual, se não instaura imediatamente um estado de perfeita injustiça, envolve, näo obstante, a expropriação, o domínio e a guerra (relações de poder).

 
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