"Publius": Alexander Hamilton, James Madison, |
sexta-feira, 18 de julho de 2014
Os Federalistas: Remédios Republicanos para Males Republicanos.
“O
Federalista” é fruto da reunião de uma serie de ensaios publicados na imprensa
de Nova York em 1788, com o objetivo de contribuir para a ratificação da
Constituição pelos Estados. Obra conjunta de três autores,
Alexander Hamilton (1755 – 1804), James Madison (1751 -1836) e John Jay (1745 –
1859), os artigos eram assinados por Publius. Madison e Hamilton encontram-se entre os líderes do movimento que
culminou na convocação da Convenção Federal, da qual foram membros. Quanto à
elaboração da Constituição, Hamilton teve uma participação discreta, já que
suas teses ultracentralizadoras foram prontamente rejeitadas. A James Madison,
por outro lado, é creditada a maior contribuição individual na elaboração da
Constituição, daí porque seja chamado de "Father of the Constitution"
(Pai da Constituição).
Após a ratificação da Constituição,
a presença dos autores de "O Federalista" na vida política
norte-americana mantém-se de suma importância. Hamilton foi o primeiro
secretário do Tesouro dos Estados Unidos e um dos principais conselheiros
políticos do presidente George Washington, a quem também esteve ligado John
Jay, o primeiro presidente da Corte Suprema. Madison, junto com Jefferson, liderou a formação do Partido
Republicano, pelo qual veio a ser eleito o quarto presidente dos Estados Unidos
em 1808.
O acordo entre os autores de
"O Federalista" não era absoluto e esteve diretamente relacionado aos
objetivos dos artigos: a defesa da ratificação da Constituição. Não concordavam entre si em vários pontos,
como também, em pontos específicos, tinham reservas quanto à Constituição
proposta. Concordavam, no entanto, que a Constituição elaborada pela Convenção
Federal oferecia um ordenamento político incontestavelmente superior ao vigente
sob os Artigos da Confederação. Por partilharem deste diagnóstico, e por
considerarem urgente para a sorte do país a adoção da nova Constituição, os
autores de "O Federalista" projetaram escrever uma série de artigos
onde a nova Constituição seria explicada e, ao mesmo tempo, refutadas as
principais objeções de seus adversários.
A filosofia política da época, em especial a exposta por Montesquieu,
era evocada pelos adversários da ratificação de uma nova constituição proposta.
Montesquieu, apontava para a
incompatibilidade entre governos populares (democráticos) e os tempos modernos.
Na fundamentação apontavam sobre a necessidade de manter grandes exércitos e a
predominância das preocupações com o bem-estar material, onde, faziam das
grandes monarquias a forma de governo mais adequada ao espírito dos tempos e
não uma republica democrática. Argumentavam também que as condições ideais exigidas pelos governos populares, um pequeno
território e cidadãos virtuosos, amantes da pátria e surdos aos interesses
materiais, não mais existiam. Se, por acaso, se formassem governos desta
natureza, seriam presas fáceis de seus vizinhos militarizados, como comprovava
a história européia.
O desafio teórico enfrentado por
"O Federalista" era o de desmentir os dogmas arraigados de uma longa
tradição. Tratava-se de demonstrar
que o espírito comercial da época não impedia a constituição de governos
populares e, tampouco, estes dependiam exclusivamente da virtude do povo ou
precisavam permanecer confinados a pequenos territórios (como argumentava
Montesquieu, você pode conferir Aqui). Os postulados dos
Federalistas são literalmente invertidos, aumentar o território e o número de
interesses são benéficos à sorte desta forma de governo. Em suma, pela
primeira vez, a teorização sobre os governos populares deixava de se mirar nos
exemplos da Antiguidade, iniciando-se, assim, sua teorização
eminentemente moderna.
O
moderno federalismo.
Um dos eixos estruturadores de
"O Federalista" é o ataque à fraqueza do governo central instituído
pelos Artigos da Confederação (no caso, o atual Estados Unidos, ainda era
subordinado a Inglaterra). Em realidade, segundo afirma Hamilton em "O
Federalista", n. 15, nem se chegou, propriamente, a criar um governo, uma
vez que estavam ausentes as condições mínimas a garantir sua existência
efetiva. Esta passagem esclarece o seu raciocínio:
“Como o Congresso não tinha poderes para
exigir o cumprimento das leis que baixava, cuja aplicação e punição dos
eventuais desobedientes ficava a cargo dos Estados, estas, a despeito do fato
de serem constitucionais, não passavam de "recomendações que os Estados
observavam ou ignoravam a seu bel-prazer".
A
única forma de criar um governo central, que realmente mereça o nome de
governo, seria capacitá-lo a exigir o cumprimento das normas dele emanadas. Para
que tal se verificasse, seria necessário que a União deixasse de se relacionar
apenas com os Estados e estendesse o seu raio de ação diretamente aos cidadãos.
Em suma, o governo central se relacionaria não apenas com outros países, mas
também com os estados membros que constituirá o País, sendo estes estados
membros independentes entre si, mas subordinado a União.
A experiência histórica demonstrava
que as confederações haviam sido levadas à ruína pelas razões
apresentadas por Hamilton (intende-se confederação, como sendo, um poder
centralizado, no qual não se permite nenhuma autonomia aos estados subjugados).
Insistir na formação de uma Confederação seria desconhecer as lições da
história e se prender às conjecturas de Montesquieu, que via nestas a
possibilidade de compatibilizar as qualidades positivas dos Estados grandes — a
força — com a dos pequenos — a liberdade. Portanto,
a Constituição proposta pelos Federalistas, defendia a criação de uma
nova forma de governo, até então não experimentada por qualquer povo ou
defendida por qualquer autor. A Constituição proposta, pelos Federalistas,
não era estritamente nacional ou federal, mas uma composição de ambos os
princípios.
O termo federal, como nomeamos hoje
esta forma de governo, entretanto, era até aquele momento, sinônimo de
confederação. A distinção ficou a
partir do ponto assinalado por Hamilton; enquanto em uma confederação o governo
central só se relaciona com Estados, cuja soberania interna permanece intacta,
em uma Federação esta ação se estende aos indivíduos, fazendo com que convivam
dois entes estatais de estatura diversa, com a órbita de ação dos Estados
definida pela Constituição da União. O federalismo nasce como um pacto
político entre os Estados, fruto de esforços teóricos e negociação política. Um
pacto político, digamos assim, fundante, pois, por seu intermédio, se constituí
aos Estados Unidos enquanto nação.
Inspirados na reflexão de
Montesquieu, calcada na história européia, os "Antifederalistas"
apontavam para os riscos à liberdade inerentes a um grande Estado, cujas características
os levava a se transformar em monarquias militarizadas. Frente a este quadro,
propunham a formação de três ou quatro confederações como forma de respeitar o
tamanho ideal dos governos populares. Hamilton,
ao contrário, detectava nesta proposta o germe da competição comercial entre as
diversas confederações. Para evitar as rivalidades comerciais, estas sim as
causadoras da militarização e do fortalecimento do executivo, defendia o pacto
federal. Este pacto favoreceria o desenvolvimento comercial dos Estados Unidos,
formando uma nação de grande extensão territorial que não dependeria de
grandes efetivos militares.
A
separação dos poderes e a natureza humana
"Mas
afinal, o que é o próprio governo senão o maior de todos os reflexos da
natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver
governos."
Esta é praticamente a primeira
afirmação de Madison enquanto a natureza do indivíduos, uma visão negativa e
potencialmente negativa. Para
citar mais um exemplo, em "O Federalista" n. 6, Hamilton relembra que
nunca se deve perder de vista o fato de os homens serem "ambiciosos,
vingativos e rapaces". Segundo ele, pensar de modo diferente "seria
ignorar o curso uniforme dos acontecimentos humanos e desafiar a
experiência acumulada ao longo dos séculos''.
Trata-se
de um recurso de argumentação utilizado para justificar a necessidade de
criação do Estado. Controlar os detentores do poder porque, como observa
Madison, os homens não são governados por anjos, mas sim por outros homens, daí
porque seja necessário controlá-los. "Ao constituir-se um governo —
integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens — a grande
dificuldade está em que se deve primeiro habilitar o governante a controlar os
governados e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo.
"As estruturas internas do governo devem
ser estabelecidas de tal forma que funcionem como uma defesa contra a tendência
natural de que o poder venha a se tornar arbitrário e tirânico. Sendo o homem o
que é, segue-se que todo aquele que detiver o poder em suas mãos tende a dele
abusar.”
Como afirma Madison;
"não se nega que o poder é, por
natureza, usurpador, e que precisa ser eficazmente contido, a fim de que não
ultrapasse os limites que lhe foram fixados". ("O Federalista",
n. 48)
A
limitação do poder, dada esta sua natureza intrínseca, só pode ser obtida pela
contraposição a outro poder, isto é, o poder freando o poder. Neste ponto,
"O Federalista" se aproxima de Montesquieu. Estas reflexões, como é
sabido, fundamentam a teoria da separação dos poderes, enunciada por este
autor. Apesar de se apoiar expressamente em Montesquieu, a
exposição de Madison da teoria da separação dos poderes contém especificidades
que merecem ser notadas.
O governo misto e a diferença de “separação de poderes”.
Para a literatura política do
século XVIII, a Inglaterra era tomada como um caso comprobatório das qualidades
do "governo misto". Segundo esta teoria, quando as funções de governo são distribuídas por diferentes grupos
sociais — realeza, nobreza e povo —, o exercício do poder deixa de ser
prerrogativa exclusiva de qualquer um dos grupos, forçando-os à colaboração,
com o que a convivência civil é aprimorada e a liberdade preservada. O
"governo misto", portanto, não é o mesmo que a "separação dos
poderes", uma distribuição horizontal das três funções principais do
Estado — a legislativa, a executiva e a judiciária — por órgãos distintos e
autônomos. A correspondência entre o "governo misto" e a
"separação dos poderes" pode ocorrer desde que cada força social seja
responsável por uma das funções.
Por
razões óbvias, o governo misto, era uma solução descartada nos Estados Unidos, onde
as condições sociais para o "governo misto" estavam ausentes. Aliás,
este não deixou de ser um problema para os colonos em luta com a Inglaterra, em
geral, adeptos da teoria do "governo misto" como a mais eficaz defesa
para a liberdade.
Thomas Paine por exemplo, a
rejeitar a teoria do "governo misto", qualificando-a de um mito, ao
tempo que afirmavam que a verdadeira segurança para a liberdade de um povo
encontrava-se em sua virtude. (Ainda que essa ideia de se espera apenas pela
virtude, antes, já havia recebido varias criticas por diversos doutrinadores,
até mesmo por Montesquieu), Thomas Paine, miravam-se nos exemplos da
Antiguidade greco-romana, cujas condições, diziam, os americanos estariam a
reproduzir. Entretanto, este era um argumento típico de parcela das fileiras
"Antifederalistas", por contraditório que possa parecer, por este
caminho também se estruturavam críticas claramente antipopulares. Se a sorte
dos governos populares dependia exclusivamente da virtude do povo, os cidadãos
americanos já estavam demonstrando estar a perdê-la. Alguns assim, propunham a
volta à teoria do "governo misto", isto é, afirmavam que apenas pela
introdução de corretivos aristocráticos a liberdade poderia ser salva na
América.
"O Federalista" rejeitava
estas duas soluções apresentada, procurando encontrar novas bases para o
governo popular. Voltemos à separação dos poderes tal qual apresentada em
"O Federalista" e vejamos quais suas relações com o ponto apresentado
a cima:
A defesa da aplicação do princípio
da separação de poderes encontra-se
construída a partir de medidas constitucionais, garantias à autonomia dos
diferentes ramos de poder, postos em relação um com os outros para que possam
se controlar e frear mutuamente, referidas, em última análise, às
características nada virtuosas dos homens, seus interesses e ambições pessoais
por acumular poder. A ideia era a seguinte, "A ambição será incentivada para enfrentar a ambição, e os
interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais."
A
adoção do princípio da separação dos poderes justifica-se como uma forma de se
evitar a tirania, onde todos os poderes se concentram nas mesmas mãos. Os
diferentes ramos de poder precisam ser dotados de força suficiente para
resistir às ameaças uns dos outros, garantindo que cada um se mantenha dentro
dos limites fixados constitucionalmente. No entanto, um equilíbrio perfeito
entre estas forças opostas, possível no comportamento dos corpos regidos pelas
leis da mecânica, não encontra lugar em um governo (uma critica a ideia de
Montesquieu, que pretendia comprovar que era possível fazer com que leis
humanas, fosse tão precisas quanto leis físicas). “O Federalista” propunha que para cada forma de governo, haverá um
poder necessariamente mais forte, de onde partem as maiores ameaças à
liberdade. Em uma monarquia, tais ameaças partem do executivo, enquanto para as
repúblicas, o legislativo se constitui na maior ameaça à liberdade, já que é a
origem de todos os poderes e, em tese, pode alteraras leis que regem o
comportamento dos outros ramos de poder. Daí porque sejam necessárias medidas adicionais para frear o seu
poder. A instituição do Senado é defendida com este fim, uma segunda câmara
legislativa composta a partir de princípios diversos daqueles presentes na
formação da Câmara dos Deputados, sendo previsível que a ação de uma leve à
moderação da outra. Outra forma de deter o poder legislativo se obtém pelo
reforço dos outros poderes. O judiciário, necessariamente o ramo mais fraco
porque destituído de poder de iniciativa, merece cuidados especiais para que
sua autonomia seja garantida. Este é um ponto defendido com ênfase por
Hamilton, que chega, em passagens de "O
Federalista" n. 78, a atribuir à Corte Suprema o poder de interpretação
final sobre o significado da Constituição. Esta importante atribuição da Corte
Suprema, no entanto, não é defendida consistentemente por qualquer um dos três
autores e veio a ser incorporada posteriormente às prerrogativas próprias à
Corte Suprema.
As repúblicas e as facções.
"O Federalista" n. 10, de
autoria de James Madison, é considerado o artigo mais importante de toda a
série, merecendo as maiores atenções dos comentaristas. A razão desta
celebridade encontra-se em sua discussão a respeito do mal das facções e das
formas de enfrenta-lo. (grupos, distintos uns dos outros, com força na
sociedade e interesses próprios, não voltado para o bem comum geral da
população). Caracterizadas como a principal ameaça à sorte dos governos
populares, tidas como forças negativas, no que segue os ensinamentos de uma
sólida tradição, Madison inova ao defender que a sorte dos governos populares
não depende da eliminação das facções, mas sim de encontrar formas de
neutralizar os seus efeitos.
Montesquieu e Rousseau afirmavam
que a sobrevivência das democracias era uma função direta da virtude dos
cidadãos que a compunham. Sendo a virtude definida como a "renúncia a si
próprio" em nome do "amor pelas leis e pela pátria", sua
preservação estava na dependência direta da manutenção da igualdade social
entre os cidadãos. Trata-se de uma igualdade na frugalidade, já que o
luxo traria consigo, inevitavelmente, a ambição e os interesses particulares.
Para Madison, tais postulações estabeleciam que as democracias só poderiam
florescer onde as facções fossem eliminadas. Madison rejeita esta solução, tida
como não factível em um governo livre. As
causas das facções encontram-se semeadas na própria natureza humana, nascendo
do livre desenvolvimento de suas faculdades. A diversidade de crenças, opiniões
e de distribuição da propriedade decorre da liberdade dos homens de disporem de
seus próprios direitos. Vale observar que entre estes direitos, Madison destaca
o da propriedade, a principal fonte diferenciadora dos homens e, por isto
mesmo, a fonte mais comum e duradoura das facções. Proteger o direito de
autodeterminação dos homens, isto é, proteger a sua liberdade, é o objetivo
primordial dos governos, sua razão de ser. Neste ponto encontra-se
explicitado o comprometimento de Madison com o credo liberal. Busca-se constituir um governo limitado e
controlado para assegurar uma esfera própria para o livre desenvolvimento dos
indivíduos, em especial de suas atividades econômicas.
Se as facções são inevitáveis, o
problema passa a ser o de impedir que um dos diferentes interesses ou opiniões
presentes na sociedade venha a controlar o poder com vistas à promoção única e
exclusiva de seus objetivos. O princípio da decisão por maioria, regra
fundamental dos governos populares, passa a representar uma ameaça aos direitos
das facções minoritárias, já que elas precisam de um número maior de votação
para chegarem ao poder.
É
fato que à maioria das pessoas aplica-se o princípio da tendência natural ao
abuso do poder quando este não encontra freios diante de si, porém é o que
naturalmente tende a acontecer nas democracias puras, onde poucas facções se
defrontam e facilmente a majoritária controla todo o poder (por conseguir um
número maior de votos). Feita esta observação chega-se a um problema
paradoxal para a teorização da democracia: o maior risco de que ela degenere em
tirania radica-se no poder que confere à maioria. Observe que a
tendência de uma facção controlar o poder é totalmente possível, caso umas
delas venha a vencer as eleições, e observe que eleições é um das
caraterísticas das Republicas, de forma que não seria possível eliminar as
eleições, ou seja, não pode contraditar a regra definitória da forma de
governo, se o fizer, logicamente, o governo deixaria de ser republicano.
Vejamos o remédio proposto por Madison.
A raiz desta inversão de
expectativas, quanto as facções, deve-se à nova espécie de governo popular que
defendia: a república. A distinção
entre as repúblicas e as democracias puras traz vantagens à primeira em dois
pontos capitais. Primeiro, fazendo com que as funções de governo sejam
delegadas a um número menor de cidadãos e, segundo, aumentando a área e o
número de cidadãos sob a jurisdição de um único governo. À primeira vista, a
primeira distinção, ao instituir a representação, traz, automaticamente, as
respostas procuradas por Madison para soluciona o problema. Em função do
"filtro" que institui, entregando o leme do Estado a homens imunes
ao partidarismo, sempre aptos a discernir e optar pelos verdadeiros interesses
do povo, a representação eliminaria o mal das facções, no
entanto, seguir esta trilha é cair em uma armadilha do texto, é não
prestar atenção ao comentário seguinte de Madison, afirmando a probabilidade de
se verificar o resultado inverso, isto é, de que pessoas de espírito
faccioso e com propósitos sinistros conseguissem obter os votos do povo para
depois traí-lo. Segue que a representação, em si, não oferece as garantias
suficientes para sanar o mal das facções.
Como afirma o próprio Madison, à
segunda característica distintiva das repúblicas deve-se a principal
contribuição para evitar o mal das facções. Sob um território mais extenso e com um número maior de cidadãos
cresce o número de interesses em conflito, de tal sorte que ou não existe um
interesse que reúna a maioria dos cidadãos, ou, na pior das hipóteses, será
difícil que se organize para agir. Ou seja, através da multiplicação das
facções chega-se à sua neutralização recíproca, tornando impossível o controle
exclusivo do poder por uma facção. Impede-se, assim, que qualquer
interesse particular tenha condições de suprimir a liberdade.
Conforme afirma, a preocupação
central da legislação moderna é a de fornecer os meios para a coordenação dos
diferentes interesses em conflito. Levar à coordenação dos interesses é a marca
distintiva das repúblicas por oposição à violência do conflito entre facções
características das democracias populares. Ante
o bloqueio mútuo das partes, a coordenação aparece como a única alternativa
para decisão dos conflitos, o interesse geral se impondo como a única
alternativa. Segundo as próprias palavras de Madison.
“Em uma república com a extensão territorial
dos Estados Unidos e com a enorme variedade de interesses, partidos e seitas
que engloba, a coalizão de uma maioria da sociedade dificilmente poderia
ocorrer com base em quaisquer outros princípios que não os da justiça e do bem
comum.”
sexta-feira, 11 de julho de 2014
Niccolo Maquiavel - Aos amigos os favores, aos inimigos a lei.
Os que vencem não importa como vencem, nunca conquista a vergonha. |
Mais de quatro
séculos nos separam da época em que viveu Maquiavel. Muitos leram
e comentaram sua obra, mas um número consideravelmente maior de pessoas evoca
seu nome ou pelo menos os termos que aí têm sua origem. Maquiavélico e
maquiavelismo são adjetivo e substantivo que estão tanto no discurso erudito,
no debate político, quanto na fala do dia-a-dia. Seu uso extrapola o mundo da
política e habita sem nenhuma cerimónia o universo das relações privadas. Em
qualquer de suas acepções, porém, o maquiavelismo está associado à ideia de
perfídia, a um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Estas expressões
pejorativas sobreviveram de certa forma incólumes no tempo e no espaço, apenas
alastrando-se da luta política para as desavenças do cotidiano. Assim, a
acusação que recai hoje sobre Maquiavel não difere substancialmente daquela que
lhe impingiu Shakespeare ao chamá-lo de "The Murderous", ou de sua
identificação com o diabo na era vitoriana, ou mesmo da incriminação que os
jesuítas faziam aos protestantes na época da Reforma, considerando-os
discípulos de Maquiavel. Como assinala Claude Lefort, em sua análise sobre o
uso abrangente multi direcional de tais acusações, o maquiavelismo serve a
todos os ódios, metamorfoseia-se de acordo com os acontecimentos, já que pode
ser apropriado por todos os envolvidos em disputa. É uma forma de desqualificar
o inimigo, apresentando-o sempre como a encarnação do mal. Personificando a
imoralidade, o jogo sujo e sem escrúpulos, o "maquiavelismo", ou
melhor, o "antimaquiavelismo" tornou-se mais forte do que Maquiavel.
É um mito que sobrevive independente do conhecimento do autor ou da obra onde
teve origem.
A contra face da
versão expressa no "autor maldito", responsabilizado por massacres e
por toda sorte de sordidez. Houve também um certa tentativa de desconstrução
deste retrato ao qual acorreram a filósofos da estatura de um Rousseau,
de um Spinoza, de um Hegel, para citarmos apenas os primeiros. Nesta
interpretação sustenta-se enfaticamente que Maquiavel discorreu sobre a
liberdade, ao oferecer preciosos conselhos para a sua conquista ou salvaguarda.
Rousseau, por exemplo, opondo-se aos intérpretes "superficiais ou
corrompidos" do autor florentino, que o qualificaram como mestre da
tirania e da perversidade, afirma: "Maquiavel, fingindo dar lições aos
Príncipes, deu grandes lições ao povo" {Do contrato social, livro 3, cap.
IV).
Maquiavel ora
apresentado como mestre da maldade, ora como o conselheiro que alerta os
dominados contra a tirania, quem era este homem capaz de provocar tanto ódio,
mas também tanto amor? Que ideias elaborou que o tornam o mais citado entre os
pensadores políticos, a ponto de suscitar as mais díspares interpretações, e de
sair das páginas dos livros eruditos para ocupar um lugar na fala mais vulgar?
Por que incitou tamanho temor, sendo sua obra mais conhecida colocada no Index
da Igreja, e por que continua a dar ensejo a tão fundos preconceitos?
As desventuras de
um florentino
Maquiavel nasceu
em Florença em 3 de maio de 1469, numa Itália "esplendorosa mas infeliz'',
no dizer do historiador Garin. A península era então constituída por uma série
de pequenos Estados, com regimes políticos, desenvolvimento económico e cultura
variados. Tratava-se, a rigor, de um verdadeiro mosaico, sujeito a conflitos
contínuos e alvo de constantes invasões por parte de estrangeiros. Até 1494,
graças aos esforços de Lourenço, o Magnífico, a península experimentou uma
certa tranquilidade. Cinco grandes Estados dominavam o mapa político: ao sul, o
reino de Nápoles, nas mãos dos Aragão; no centro, os Estados papais controlados
pela Igreja e a república de Florença, presidida pelos Médicis; ao norte, o
ducado de Milão e a república de Veneza. Nos últimos anos do século,
entretanto, a desordem e a instabilidade eram incontroláveis. Às dissensões
internas e entre regiões somaram-se as invasões das poderosas nações vizinhas,
França e Espanha. Assim, os Médicis são expulsos de Florença; acirram-se as
discórdias entre Milão e Nápoles; os domínios da Igreja passam a ser governados
por Alexandre VI, um papa espanhol da família Borgia, guiado por ambições sem
limites; o rei Carlos VIII, da França, invade a península e consegue dominá-la
de Norte a Sul. Pouco tempo depois, com a morte do papa Alexandre VI, o trono é
ocupado por Júlio II, que se alia primeiro aos franceses contra Veneza e em
seguida, em 1512, funda a Santa Liga contra a França. Neste cenário conturbado,
no qual a maior parte dos governantes não conseguia se manter no poder por um
período superior a dois meses, Maquiavel passou sua infância e adolescência.
Sua família não era nem aristocrática, nem rica. Seu pai, advogado, como um
típico renascentista, era um estudioso das humanidades, tendo se empenhado em
transmitir uma aprimorada educação clássica para seu filho. Dessa forma, com
orgulho, noticiava a um amigo que Nicolau, com apenas 12 anos, já redigia no
melhor estilo em latim, dominando a retórica greco-romana.
Como o próprio
Maquiavel afirmava seus textos são os que resultam de sua experiência prática e
do convívio com os clássicos. “O Príncipe” data dos anos de 1512 a 1513; Os
“Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, de 1513 a 1519; o livro
sobre a “Arte da guerra”, de 1519 a 1520; e, por último, sua “História de
Florença”, de 1520 a 1525. Ao lado destas publicações, escreveu a comédia “A
mandrágora”, considerada obra-prima do teatro italiano; uma biografia sobre
Castruccio Castracani e uma coleção de poesias e ensaios literários.
Depois da
redação de O príncipe, a vida de Maquiavel é marcada por uma contínua
alternância de esperanças e decepções. Para conseguir os favores dos Médicis
dedica-lhes seu livro e pede a intervenção de amigos. Os governantes são pouco
sensíveis aos apelos — para os tiranos ele é um republicano. Finalmente, em
1520, a Universidade de Florença, presidida pelo cardeal Júlio de Médicis,
encarrega-o de escrever sobre Florença. Desta incumbência nasce sua última obra
e também sua última frustração. Pois, com a queda dos Médicis em 1527 e a
restauração da república, Maquiavel, que imaginara terem assim findados seus
infortúnios, vê-se identificado pelos jovens republicanos como alguém que
possuía ligações com os tiranos depostos, já que deles recebera a tarefa de escrever
sobre sua cidade. Desta vez, viu-se vencido. Esgotaram-se suas forças. A
república considerou-o seu inimigo. Desgostoso, adoece e morre em junho.
A verdade efetiva
das coisas
O destino
determinou que eu não saiba discutir sobre a seda, nem sobre a lã; tampouco
sobre questões de lucro ou de perda. Minha missão é falar sobre o Estado. Será
preciso submeter-me à promessa de emudecer, ou terei que falar sobre ele.
(Carta a F. Vettori, de 13/03/1513.)
Este trecho de uma carta escrita por Maquiavel revela sua "pre-destinação" inarredável: falar sobre o Estado. De fato, sua preocupação em todas as suas obras é o Estado. Não o melhor Estado, aquele tantas vezes imaginado, mas que nunca existiu. Mas o Estado real, capaz de impor a ordem. Maquiavel rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e segue a trilha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Lívio. Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na verdade efetiva das coisas. Esta é sua regra metodológica: ver e examinar a realidade tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse. A substituição do reino do dever ser, que marcara a filosofia anterior, pelo reino do ser, da realidade, leva Maquiavel a se perguntar: como fazer reinar a ordem, como instaurar um Estado estável? O problema central de sua análise política é descobrir como pode ser resolvido o inevitável ciclo de estabilidade e caos.
Ao formular e
buscar resolver esta questão, Maquiavel provoca uma ruptura com o saber
repetido pelos séculos. Trata-se de uma indagação radical e de uma nova
articulação sobre o pensar e fazer política, que põe fim à ideia de uma ordem
natural e eterna. A ordem,
produto necessário da política, não é natural, nem a materialização de uma
vontade extraterrena, e tampouco resulta do jogo de dados do acaso. Ao
contrário, a ordem tem um imperativo: deve ser construída pelos homens para se
evitar o caos e a barbárie, e, uma vez alcançada, ela não será definitiva, pois
há sempre, em germe, o seu trabalho em negativo, isto é, a ameaça de que seja
desfeita. "Enveredando
por um caminho ainda não trilhado", como reconhece explicitamente nos
Discursos, o autor florentino reinterpreta a questão da política.
Ela é o resultado de feixes de forças, proveniente das açòes concretas dos homens em sociedade, ainda que nem todas as suas facetas venham do reino da racionalidade e sejam de imediato reconhecíveis. Ao perceber o que há de transitório e circunstancial no arranjo estabelecido em uma determinada ordem, monta um enigma para seus contemporâneos. Enigma que se recoloca incessantemente e que a cada significado encontrado remete a outra significação para além de si. Este pensamento em constante transmutação e fluxo, que determina seu curso pelo movimento da realidade, transformará Maquiavel num clássico da filosofia política, atraindo a atenção e esforços de compreensão de seus leitores de todos os tempos. Tem-se sempre a sensação de que é necessário ler, reler, e voltar a ler a obra e que são infindáveis as suas possibilidades de formalização. Sua armadilha é atraente — fala do poder que todos sentem, mas não conhecem. Porém, para conhecê-lo é preciso suportar a ideia da incerteza, da contingência, de que nada é estável e que o espaço da política se constitui e é regido por mecanismos distintos dos que norteiam a vida privada. E mais ainda: o mundo da política não leva ao céu, mas sua ausência é o pior dos infernos.
Por outro lado,
a forma que usa para expor suas ideias exige atenção. Não só porque recoloca e
problematiza velhos temas, mas sobretudo porque rediscute-os incessantemente,
obrigando o leitor a pôr sempre em xeque a primeira compreensão. Por isso,
qualquer tentativa de sistematizar os escritos de Maquiavel é sempre provisória
e sujeita a novas interpretações. Vale assim, para os seus escritos, a mesma
metodologia que usava para ler a realidade e, afinal, de há muito sua obra
deixou de ser apenas uma referência de erudição ilustrada. Pelo que significa e
tem significado nas práticas históricas é ela própria simultaneamente um
monumento e um instrumento político, retornando sempre como um enigma complexo
que só pode ser decifrado pela análise de sua presença concreta e sua venta
effettuale (verdade efetiva). Isto posto, ocupemo-nos do exame de alguns temas
vitais para a compreensão da intrincada construção do pensamento de Maquiavel.
E claro que este é apenas um ângulo possível num prisma multifacetado.
Natureza humana e
historia
Guiado pela
busca da "verdade efetiva", Maquiavel estuda a história e reavalia
sua experiência como funcionário do Estado. Seu
"diálogo" com os homens da antiguidade clássica e sua prática
levam-no a concluir que por toda parte, e em todos os tempos, pode-se observar
a presença de traços humanos imutáveis. Daí afirmar, os homens "são
ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os perigos, ávidos de
lucro" {O príncipe, cap. XVII). Estes atributos negativos compõem a
natureza humana e mostram que o conflito e a anarquia são desdobramentos necessários
dessas paixões e instintos malévolos. Por outro lado, sua reiterada permanência
em todas as épocas e sociedades transformam a história numa privilegiada fonte
de ensinamentos. Por isso, o estudo do passado não é um exercício de mera
erudição, nem a história um suceder de eventos em conformidade com os desígnios
divinos até que chegue o dia do juízo final, mas sim um desfile de fatos dos
quais se deve extrair as causas e os meios utilizados para enfrentar o caos
resultante da expressão da natureza humana. Desta forma, sustenta o pensador
florentino, aquele que estudar cuidadosamente o passado pode prever os
acontecimentos que se produzirão em cada Estado e utilizar os mesmos meios que
os empregados pelos antigos. Ou então, se não há mais os remédios que já foram empregados,
imaginar outros novos, segundo a semelhança dos acontecimentos. (Discursos,
livro I. cap. XXXIX.) A
história é cíclica, repete-se indefinidamente, já que não há meios absolutos
para "domesticar" a natureza humana. Assim, a ordem sucede à desordem
e esta, por sua vez, clama por uma nova ordem. Como, no entanto, é impossível
extinguir as paixões e os instintos humanos, o ciclos se repete. O que pode
variar — e nesta variação encontra-se o âmago da capacidade criadora humana e,
portanto, da política — são os tempos de duração das formas de convívio entre
os homens. O poder político tem, pois, uma origem mundana. Nasce da própria
"malignidade" que é intrínseca à natureza humana. Além disso, o poder
aparece como a única possibilidade de enfrentar o conflito, ainda que qualquer
forma de "domesticação" seja precária e transitória. Não há garantias de sua
permanência. A perversidade das paixões humanas sempre volta a se manifestar,
mesmo que tenha-permanecido oculta por algum tempo.
Para mudar tal
situação não é um ditador; é, mais propriamente, um fundador do Estado, um
agente da transição numa fase em que a nação se acha ameaçada de decomposição.
Quando, ao contrário, a sociedade já encontrou formas de equilíbrio, o poder
político cumpriu sua função regeneradora e "educadora", ela está
preparada para a República.
Neste regime, que por vezes o pensador florentino chama de liberdade, o povo é virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a dinâmica das relações sociais. Os conflitos são fonte de vigor, sinal de uma cidadania ativa, e portanto são desejáveis. Face à Itália de sua época — dividida, corrompida, sujeita às invasões externas — Maquiavel não tinha dúvidas: era necessário sua unificação e regeneração. Tais tarefas tornavam imprescindível o surgimento de um homem virtuoso capaz de fundar um Estado. Era preciso, enfim, um príncipe.
Anarquia x Principado
e Republica
À desordem
proveniente da imutável natureza humana, Maquiavel acresce um importante fator
social de instabilidade: a presença inevitável, em todas as sociedades, de duas
forças opostas, "uma das quais provém de não desejar o povo ser dominado
nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir
o povo" {O príncipe, cap. IX).
Note-se que uma das forças quer dominar, enquanto a outra não quer ser dominada. Se todos quisessem o domínio, a oposição seria resolvida pelo governo dos vitoriosos. Contudo, os vitoriosos não sufocam definitivamente os vencidos, pois estes permanecem não querendo o domínio. O problema político é então encontrar mecanismos que imponham a estabilidade das relações, que sustentem uma determinada correlação de forças. Maquiavel sugere que há basicamente duas respostas à anarquia decorrente da natureza humana e do confronto entre os grupos sociais:, o Principado e a República. A escolha de uma ou de outra forma institucional não depende de um mero ato de vontade ou de considerações abstratas e idealistas sobre o regime, mas da situação concreta. Assim, quando a nação encontra-se ameaçada de deterioração, quando a corrupção alastrou-se, é necessário um governo forte, que crie e coloque seus instrumentos de poder para inibir a vitalidade das forças desagregadoras e centrífugas. O príncipe.
Virtù X fortuna
A crença na
predestinação dominava há longo tempo. Este era um dogma que Maquiavel teria
que enfrentar, por mais fortes que fossem os rancores que atraísse contra si.
Afinal, a atividade política, tal como arquitetara, era uma prática do homem
livre de freios extraterrenos, do homem sujeito da história. Esta prática
exigia virtú, o domínio sobre a fortuna.
Para pensar a virtú e a fortuna mais uma vez Maquiavel recorre aos ensinamentos dos historiadores clássicos, buscando contrapô-los aos preceitos dominantes na Itália seiscentista. Para os antigos, a Fortuna não era uma força maligna inexorável. Ao contrário, sua imagem era a de uma deusa boa, uma aliada potencial, cuja simpatia era importante atrair. Esta deusa possuía os bens que todos os homens desejavam: a honra, a riqueza, a glória, o poder. Mas como fazer para que a deusa Fortuna nos favorecesse e não a outros, perguntavam-se os homens da antiguidade clássica? Era imprescindível seduzi-la, respondiam. Como se tratava de uma deusa que era também mulher, para atrair suas graças era necessário mostrar-se um homem de verdadeira virilidade, de inquestionável coragem. Assim, o homem que possuísse virtú no mais alto grau seria beneficiado com os presentes da cornucópia da Fortuna. Esta visão foi inteiramente derrotada com o triunfo do cristianismo. A boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por um "poder cego", inabalável, fechado a qualquer influência, que distribui seus bens de forma indiscriminada. A Fortuna não tem mais como símbolo a cornucópia, mas a roda do tempo, que gira indefinidamente sem que se possa descobrir o seu movimento. Nessa visão, os bens valorizados no período clássico nada são. O poder, a honra, a riqueza ou a glória não significam felicidade. Esta não se realiza no mundo terreno. O destino é uma força da providência divina e o homem sua vítima impotente. Maquiavel inicia o penúltimo capítulo de O príncipe referindo-se a esta crença na fatalidade e à impossibilidade dos homens alterarem o seu curso. Chega, inclusive, com certa ironia, a afirmar que se inclinou a concordar com essa opinião. No entanto, o desenrolar de sua exposição mostra-nos, com toda clareza, que se trata de uma concordância meramente estratégica. Concorda para poder desenvolver os argumentos da discordância. Assim, após admitir o império absoluto da Fortuna, reserva, poucas linhas a seguir, ao livre-arbítrio pelo menos o domínio da metade das ações humanas. E termina o capítulo demonstrando a possibilidade da virtú conquistar a fortuna.
Assim, Maquiavel
monta um cenário no qual a liberdade do homem é capaz de amortecer o suposto
poder incontrastável da Fortuna. Ou melhor dizendo, ao se indagar sobre a
possibilidade de se fazer uma aliança com a Fortuna, esta não é mais uma força
impiedosa, mas uma deusa boa, tal como era simbolizada pelos antigos. Ela é
mulher, deseja ser seduzida e está sempre pronta a entregar-se aos homens
bravos, corajosos, aqueles que demonstram ter virtú. Não cabe nesta imagem a
ideia da virtude cristã que prega uma bondade angelical alcançada pela
libertação das tentações terrenas, sempre à espera de recompensas no céu. Ao
contrário, o poder, a honra e a glória, típicas tentações mundanas, são bens
perseguidos e valorizados. O homem de virtú pode consegui-los e por eles luta.
Dessa forma, o poder que nasce da própria natureza humana e encontra seu
fundamento na força é redefinido. Não se trata mais apenas da força bruta, da
violência, mas da sabedoria no uso da força, da utilização virtuosa da força. O
governante não é, pois, simplesmente o mais forte — já que este tem condições
de conquistar mas não de se manter no poder —, mas sobretudo o que demonstra
possuir virtú, sendo assim capaz de manter o domínio adquirido e se não o amor,
pelo menos o respeito dos governados.
A partir destas
variáveis pode-se retornar, mais uma vez, ao início de O príncipe e dar um novo
significado à distinção aparentemente formal entre os principados hereditários
e os novos. Maquiavel sublinha que o poder se funda na força mas é necessário
virtú para se manter no poder; mais nos domínios recém-adquiridos do que
naqueles há longo tempo acostumados ao governo de um príncipe e sua família.
No entanto, nem
mesmo o principado hereditário é seguro. Sua advertência — não há garantias de
que o domínio permaneça — vale para todas as formas de organização do poder. Um governante virtuoso procurará
criar instituições que "facilitem" o domínio. Consequentemente, sem
virtú, sem boas leis, geradoras de boas instituições, e sem boas armas, um
poder rival poderá impor-se. Destes constrangimentos não escapam nem mesmo os
principados hereditários que pareciam a princípio tão seguros. Afora isto, como
sustentar a radical distinção entre os principados antigos e os novos, se ambos
têm igual origem — a força? A força explica o fundamento do poder, porém é a
posse de virtú a chave por excelência do sucesso do príncipe. Sucesso este que
tem uma medida política: a manutenção da conquista. O governante tem que se
mostrar capaz de resistir aos inimigos e aos golpes da sorte, "construindo
diques para que o rio não inunde a planície, arrasando tudo o que encontra em
seu caminho". O homem de virtú deve atrair os favores da cornucópia,
conseguindo, assim, a fama, a honra e a glória para si e a segurança para seus
governados. É desta perspectiva que ganha um novo sentido a discussão sobre as
qualidades do príncipe. Este deveria ser bom, honesto, liberal, cumpridor de
suas promessas, conforme rezam os mandamentos da virtude cristã? Maquiavel é
incisivo: há vícios que são virtudes. Não tema pois o príncipe que deseje se
manter no poder "incorrer no opróbrio dos defeitos mencionados, se tal for
indispensável para salvar o Estado". (O príncipe, cap. XV). Os ditames da
moralidade convencional podem significar sua ruína. Um príncipe sábio deve
guiar-se pela necessidade — "aprender os meios de não ser bom e a fazer
uso ou não deles, conforme as necessidades". Assim, a qualidade exigida do
príncipe que deseja semanter no poder é sobretudo a sabedoria de agir conforme
as circunstâncias. Devendo, contudo, aparentar possuir as qualidades
valorizadas pelos governados. O jogo entre a aparência e a essência sobrepõe-se
à distinção tradicional entre virtudes e vícios. A virtú política exige também
os vícios, assim como exige o reenquadramento da força. O agir virtuoso é um
agir como homem e como animal. Resulta de uma astuciosa combinação da
virilidade e da natureza animal. Quer como homem, quer como leão (para
amedrontar os lobos), quer como raposa (para conhecer os lobos), o que conta é
"o triunfo das dificuldades e a manutenção do Estado. Os meios para isso nunca deixarão de
ser julgados honrosos, e todos os aplaudirão"{O príncipe, cap. XVIII).
A política tem uma ética e uma lógica próprias. Maquiavel
descortina um horizonte para se pensar e fazer política que não se enquadra no
tradicional moralismo piedoso. A resistência à aceitação da radicalidade de
suas proposições é seguramente o que dá origem ao "maquiavélico". A
evidência fulgurante deste adjetivo acaba velando a riqueza das descobertas
substantivas. O mito, uma
constante em sua obra, é falado para ser desmistificado. Maquiavel não o aceita
como quer a tradição — algo naturalizado e eterno. Recupera no mito as questões
que aí jaziam adormecidas e pacificadas. E, ao fazer isto, subverte as
concepções acomodadas, de há muito
estabelecidas, instaurando a modernidade no pensar a
política. Ora, desmistificar tem sempre um alto risco. O cidadão
florentino pagou-o em vida e sua morte não lhe trouxe o descanso do esquecimento.
Transformado em mito, é novamente vitimizado.
O pensamento político moderno e critico, para decifrar
o enigma proposto em sua obra, precisa resgatá-lo sem preconceitos e
em sua verità effettuale. É o que se deve a Nicolau Maquiavel, o cidadão
sem fortuna, o intelectual de virtú.
sexta-feira, julho 11, 2014
quinta-feira, 10 de julho de 2014
Thomas Hobbes: O Lobo do Homem
O governo central seria uma espécie de monstro - o Leviatã |
Podemos entender
por que Hobbes é, com Maquiavel e em certa medida Rousseau, um dos pensadores
mais "malditos" da história da filosofia política - pois, no século
XVII, o termo "hobbista", é quase tão ofensivo quanto
"maquiavélico". Não é só porque apresenta o Estado como monstruoso, e
o homem como belicoso, rompendo com a confortadora imagem aristotélica do bom
governante e do indivíduo de boa natureza. Não é só porque subordina a religião
ao poder político. Mas é também porque nega um direito natural ou sagrado do
indivíduo à propriedade.
No seu tempo, e
ainda hoje, a burguesia vai procurar fundar a propriedade privada num direito
anterior e superior ao Estado: por isso ela endossará Locke, dizendo que a
finalidade do poder público consiste em proteger a propriedade. Um direito aos
bens que dependa do beneplácito do governante vai frontalmente contra a
pretensão da burguesia a controlar, enquanto classe, o poder de Estado; e, como
isso é o que vai acontecer na Inglaterra após a Revolução Gloriosa (1688), o
pensamento hobbesiano não terá campo de aplicação em seu
próprio país, nem em nenhum outro.
O resultado pode
parecer frustrante, para um pensador que escreveu as três versões de sua filosofia
política enquanto o seu país vivia terrível guerra civil (De corpore
politico, 1640; De cive, 1642; Leviatã, 1651), e considerava que
esses livros ofereciam a única base para fundar um Estado que desse, aos
homens, não apenas a sobrevivência, mas a melhor condição material - paz e
conforto.
"A
ciência política não é mais antiga que meu livro De cive", disse
Hobbes, desqualificando em especial o pensamento aristotélico, então ainda
dominante, mas que para ele era sem medita a tamanha grosseria ali exposta, na
obra de Aristóteles, de tal modo que não poderia sequer ser considerada ciência
politica. E apesar da inúmeras criticas feita a teoria de Hobbes, ainda hoje
ele é um pensador importantíssimo para a ciência politica, pois ele tal como
Maquiavel, foi um dos primeiros que indicou um caminho a ser percorrido, numa
tentativa de avaliar as coisas tais como são e não como gostaríamos que fosse,
e a partir dai fundamenta um Estado com base nessas premissas.
Hobbes: o medo e a
esperança
Hobbes é um contratualista,
quer dizer, um daqueles filósofos que, entre o século XVI e o XVIII
(basicamente), afirmaram que a origem do Estado e/ou da sociedade está num
contrato: os homens viveriam, naturalmente, sem poder e sem organização - que
somente surgiriam depois de um pacto firmado por eles, estabelecendo as regras
de convívio social e de subordinação política.
Sir Henry Maine
- por exemplo - criticou-os asperamente: Seria impossível, dizia ele,
selvagens que nunca tiveram contato social dominarem a tal ponto a linguagem,
conhecerem uma noção jurídica tão abstrata quanto a de contrato, para que
pudessem se reunir nas clareiras das florestas e fazerem um pacto social. Na
verdade, o contrato só é possível quando há noções que nascem de uma longa
experiência da vida em sociedade - Mas é preciso ver que erro Maine cometeu:
Raro, ou nenhum, contratualista pensou que selvagens isolados se juntam numa
clareira para fazer um simulacro de constituinte. Voltaremos a isso depois, por ora, tenha isso em mente: o homem natural
de Hobbes não é um selvagem. É o mesmo homem que vive em sociedade. Melhor
dizendo, a natureza do homem não muda conforme o tempo, ou a história, ou a
vida social, para Hobbes, como para a maior parte dos autores de antes do
século XVIII, não existe a história entendida como transformadora dos homens.
Estes não mudam. É por isso que Hobbes, e outros, citam os gregos e romanos
quando querem conhecer ou exemplificar algo sobre o homem, mesmo e seu tempo.
Mas, afinal como
o homem é naturalmente para Hobbes? Segundo ele "A natureza fez os homens tão
iguais, quanto ás capacidades do corpo (físico) e do espírito
(intelectualmente), que, embora por vezes se encontre um homem manifestamente
mais forte de corpo ou de espírito mais vivo do que outro, mesmo assim, quando
se considera tudo isso em conjunto, a diferença entre um e outro homem não é
suficientemente considerável para que qualquer um possa com base nela reclamar
qualquer benefício a si próprio que outro também não possa aspirar. Porque quanto à força corporal o mais
fraco tem força suficiente para matar o mais forte, quer por secreta
maquinação, quer aliando-se com outros que se encontrem ameaçados pelo mesmo
perigo. E Quanto ás faculdades do espírito ele encontra entre os homens uma
igualdade ainda maior do que a igualdade de força. Porque ás faculdades de
espirito nada mais é do que experiência, que um tempo igual igualmente
oferece a todos os homens, naquelas coisas a que igualmente se dedicam.
Para Hobbes, o
que talvez possa tornar inaceitável essa ideias entre os homens, é que essa
igualdade é simplesmente a concepção vaidosa da própria sabedoria, a qual quase
todos os homens supõe possuir em maior grau do que o vulto; quer dizer, em
maior grau do que todos menos eles próprios, e alguns outros que, ou devido à
fama ou devido a concordarem com eles, merecem sua aprovação. Pois a natureza dos homens é tal
que, embora sejam capazes de reconhecer em muitos outros maior inteligência,
maior eloquência ou maior saber, dificilmente acreditam que haja muitos tão
sábios como eles próprios; porque vêem sua própria sabedoria bem de perto, e a
dos outros homens à distância. Mas isto prova que os homens são iguais quanto a
esse ponto, e não que sejam desiguais.
É importante
ressaltar que ele não afirma que os homens são absolutamente
iguais, mas que são "tão iguais que...": iguais o bastante para que
nenhum possa triunfar de maneira total sobre outro.
Todo homem é
opaco aos olhos de seu semelhante - eu
não sei o que o outro deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual
será a sua atitude mais prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que
quero, também é forçado a supor o que farei. Dessa suposições recíprocas,
decorre que geralmente o mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para
vencê-lo, ou simplesmente para evita um ataque possível: assim a guerra se
generaliza entre os homens. Por
isso, se não há um Estado controlando e reprimindo, fazer a guerra contra os
outros é a atitude mais racional que eu posso adotar. É preciso enfatizar
esse ponto, para ninguém pensar que o "homem lobo do homem", em
guerra contra todos, é um anormal; suas ações e cálculos são os únicos
racionais, no estado de natureza para Hobbes.
Da igualdade
quanto à capacidade de força e de espirito deriva a igualdade quanto á
esperança de atingirmos
nossos fins. Portanto se dois homens desejam a mesma coisa, ao mesmo tempo que
é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho
para seu fim (que é principalmente sua própria conservação, e às vezes apenas
seu deleite) esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.
E disto se segue
quando um invasor nada mais tem a recear do poder de um único outro homem, ou
seja, se alguém planta, semeia, constrói ou possui um lugar conveniente, é
provavelmente de esperar que outros venham preparados com forças conjugadas,
para desapossá-lo e privá-lo, não apenas do fruto de seu trabalho, mas também
de sua vida e de sua liberdade. Por sua vez, o invasor ficará no mesmo perigo
em relação aos outros. E contra esta desconfiança de uns em relação aos outros,
nenhuma maneira de se estar garantido é tão razoável como a antecipação;
isto é, pela força ou pela astúcia, subjugar as pessoas de todos os homens que
puder, durante o tempo necessário para chegar ao momento em que não veja
qualquer outro poder suficientemente grande para ameaçá-lo, atacando primeiro antes
de ser atacado. E isto não é mais do que sua própria conservação exige,
conforme é geralmente admitido. Também
por causa de alguns que, comprazendo-se em contemplar seu próprio poder nos
atos de conquista, levam estes atos mais longe do que sua segurança exige, se
outros que, do contrário, se contentariam em manter-se tranqüilamente dentro de
modestos limites, não aumentarem seu poder por meio de invasões, eles serão
incapazes de subsistir durante muito tempo, se se limitarem apenas a uma
atitude de defesa. Consequentemente
esse aumento do domínio sobre os homens, sendo necessário para a conservação de
cada um, deveria ser por todos admitido.
E dessa forma,
os homens não tiram prazer algum da companhia uns dos outros (e sim, pelo
contrário, um enorme desprazer), quando não existe um poder capaz de manter a
todos em respeito, porque cada um pretende que seu companheiro lhe atribua o
mesmo valor que ele se atribui a si próprio, e ainda de modo que na natureza do
homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição,
segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória. A primeira leva os homens a
atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira,
a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das
pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para
defende-se por antecipação ou por segurança; e os terceiros por ninharias, como
uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de
desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a
seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome.
Com isto se
torna manifesto que durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum
capaz de os manter a todos em respeito, em ordem eles se encontrarão naquela
condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra
todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha, ou no ato de
lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar batalha é
suficientemente conhecida e provável, portanto, para Hobbes, a noção de tempo
deve ser levada em conta quanto á natureza da guerra, do mesmo modo que quanto
à natureza do clima. Porque
tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas
numa tendência para chover que dura vários dias seguidos, assim também a
natureza da guerra não consiste na luta real, mas na conhecida disposição para
tal, durante todo o tempo em que não há garantia do contrário.
Hobbes tem perfeita
consciência de que essa definição há de chocar seus leitores, que se prendem à
definição aristotélica do homem como zoon politikon, animal social.
Para Aristóteles, o homem naturalmente vive em sociedade, e só desenvolve todas
as suas potencialidades dentro do Estado. Esta é a convicção da maioria das
pessoas, que preferem fechar os olhos à tensão que há na convivência com os
demais homens, e conceber a relação social como harmônica. Por isso Hobbes
acrescenta um apelo á experiência pessoal:
“Que seja,
portanto, a considerar-se a si mesmo, que quando empreende uma viagem se arma e
procura ir bem acompanhado; que quando vai dormir fecha suas portas; que mesmo
quando está em casa tranca seus cofres; e isto mesmo sabendo que existem leis e
funcionários públicos armados, prontos a vingar qualquer injúria que lhe possa
ser feita. Então que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de
seus concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando
tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos
como eu o faço com minhas palavras? Mas nenhum de nós acusa com isso a natureza
humana.” - O que Hobbes
pede, então, é um exame de consciência: - "conhece-te a ti mesmo".
Estamos
carregados de preconceitos que vêm basicamente de Aristóteles e da filosofia
escolástica medieval. Mas o mito de que o homem é sociável por natureza nos
impede de identificar onde está o conflito, e de contê-lo. A política só será
uma ciência se soubermos como o homem é de fato, e não na ilusão; e só com a
ciência política será possível construirmos Estados que se sustentem, em vez de
tornarem permanente a guerra civil.
Há um ditado que
ultimamente tem sido muito usado; que a sabedoria não se adquire pela leitura
dos livros, mas do homem. Em consequência do que aquelas pessoas, que regra
geral são incapazes de apresentar outras provas de sua sabedoria, comprazem-se
em mostrar o que pensam ter lido nos homens, através de impiedosas censuras que
fazem umas às outras, por trás das costas. Mas há um outro ditado que
ultimamente não tem sido compreendido, graças ao qual os homens poderiam
realmente aprender a ler-se uns aos outros, se se dessem ao trabalho de
fazê-lo: isto é, Nosce te ipsum, "Lê-te a ti mesmo". Ensinar-nos
que, a partir da semelhança entre os pensamentos e paixões dos diferentes
homens, quem quer que olhe para dentro de si mesmo, e examine o que faz quando
pensa, opina, raciocina, espera, receia etc., e por que motivos o faz, poderá
por esse meio ler e conhecer quais são os pensamentos e paixões de todos os
outros homens, em circunstâncias idênticas. Refiro-me á semelhança das paixões,
que são as mesmas em todos os homens, desejo, medo, esperança etc., e não à
semelhança dos objetos das paixões, que são as coisas desejadas, temidas,
esperadas etc.
A constituição
individual e a educação de cada um são tão variáveis, e são tão fáceis de
ocultar a nosso conhecimento, que os caracteres do coração humano, emaranhados
e confusos como são, devido à dissimulação, à mentira, ao fingimento e às
doutrinas errôneas, só se tornam legíveis para quem investiga os corações. E,
embora por vezes descubramos os desígnios dos homens através de suas ações,
tentar fazê-lo sem compará-las com as nossas, distinguindo todas as
circunstâncias capazes de alterar o caso, é o mesmo que decifrar sem ter uma
chave, e deixar-se o mais das vezes enganar, quer por excesso de confiança ou
por excesso de desconfiança, conforme aquele que lê seja um bom ou um mau
homem. Mas mesmo que um homem seja capaz de ler perfeitamente um outro através
de suas ações, isso servir-lhe-á apenas com seus conhecidos, que são muito
poucos. Aquele que vai governar uma nação inteira deve ler, em si mesmo, não
este ou aquele indivíduo em particular, mas o gênero humano. O que é coisa difícil,
mais ainda do que aprender qualquer língua ou qualquer ciência, mas ainda
assim, depois de eu ter exposto claramente e de maneira ordenada minha própria
leitura, o trabalho que a outros caberá será apenas verificar se não encontram
o mesmo em si próprios. Pois esta espécie de doutrina não
admite outra demonstração, explica Hobbes no livro o Leviatã .
Como por fim a
esse conflito?
Para Hobbes, o
homem é o indivíduo. Mas atenção, antes de falarmos em individualismo burguês. O indivíduo hobbesiano não almeja
tanto os bens, mas a honra. Entre as causas da violência, uma das principais
reside na busca da glória, quando os homens se batem "por ninharias, como
uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer outro sinal de
desprezo, quer seja diretamente dirigido a suas pessoas, quer indiretamente a
seus parentes, seus amigos, sua nação, sua profissão ou seu nome. A honra é o
valor atribuído a alguém em função das aparências externas.
O homem
hobbesiano não é então um homo oeconomicus, porque seu maior
interesse não está em produzir riquezas, nem mesmo em pilhá-las. O mais
importante para ele é ter os sinais de honra, entre os quais se inclui a
própria riqueza (mais como meio, do que como fim em si). Quer dizer que o homem
vive basicamente de imaginação. Ele imagina ter um poder, imagina ser
respeitado - ou ofendido - pelos semelhantes, imagina o que o outro vai fazer.
Da imaginação - e neste ponto Hobbes concorda com muitos pensadores do século
XVII e XVIII - decorrem perigos, porque o homem se põe a fantasiar o que é
irreal. O estado de
natureza é uma condição de guerra, porque cada um se imagina (com razão ou sem)
poderoso, perseguido, traído.
Como pôr termo a
esse conflito? Há uma base jurídica para isso; depois do direito de natureza (o direito que todos tem, independente
de qualquer coisa externa que os proíba, como o Estado e etc, Direito Natural),
Hobbes define o que é a lei de
natureza (é aquilo que o
Estado estipula como adequado para a sobrevivência do homem, segundo o
entendimento do governante, Direito Positivo) :
"Uma lei de
natureza (lex naturalis) é um preceito ou regra geral, estabelecido pela
razão, mediante o qual se proíbe a um homem fazer tudo o que possa destruir sua
vida ou privá-lo dos meios necessários para preservá-la, ou omitir aquilo que
pense poder contribuir melhor para preservá-la. Porque embora os que têm
tratado deste assunto costumem confundir o direito e
a lei, é necessário distingui-los um do outro. Pois o direito consiste na
liberdade de fazer ou de omitir algo, ao passo que a lei determina ou obriga a
uma dessas duas coisas (fazer ou omitir). De
modo que a lei e o direito se distinguem tanto como a obrigação e a liberdade,
as quais são incompatíveis quando se referem à mesma matéria.
Assim, para
Hobbes, todo homem tem direito a todas as coisas, incluindo os corpos dos
outros. Mas a partir disso é necessário haver uma lei que proíba certos ou
autorize certos direitos.
Portanto,
enquanto perdurar este direito de cada homem a todas as coisas, não poderá
haver para nenhum homem (por mais forte e sábio que seja) a segurança de viver
todo o tempo que geralmente a natureza permite aos homens viver. Consequentemente é um preceito ou regra geral da
razão, Que todo homem deve esforçar-se pela
paz, na medida em que tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode
procurar e usar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta
regra encerra a lei primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz,
e segui-la. A segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos
os meios que pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.
Desta lei
fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que
procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando
outros também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e
para a defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas,
contentando-se em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos
outros homens permite em relação a si mesmo.
Porque enquanto
cada homem detiver seu direito de fazer tudo quanto queira todos os homens se
encontrarão numa condição de guerra. Mas se os outros homens não renunciarem a
seu direito, assim como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se
prive do seu, pois isso equivaleria a oferecer-se como presa, e não a dispor-se
para a paz.
Mas não basta o
fundamento jurídico. É preciso que exista um Estado dotado da espada, armado,
para forçar os homens ao respeito. Desta maneira, aliás, a imaginação será
regulada melhor, porque cada um receberá o que o soberano determinar. Porque as
leis de natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia,
a piedade, ou, em resumo, fazer aos outros o que queremos que nos façam)
por si mesmas, na ausência do temor de algum poder capaz de levá-las a ser
respeitadas, são contrárias a nossas paixões naturais, as quais nos fazem
tender para a parcialidade,
o orgulho, a vingança e coisas semelhantes. Os pactos sem a espada não passam de palavras, sem
força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar das leis de
natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las), se não for
instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada um
confiará apenas em sua própria força e capacidade, como proteção contra todos
os outros.
Em todos os
lugares onde os homens viviam em pequenas famílias, roubar-se e espoliar-se uns
aos outros sempre foi uma ocupação legítima, e tão longe de ser considerada
contrária à lei de natureza que quanto maior era a espoliação conseguida maior
era a honra adquirida. Para Hobbes, então, o poder do Estado tem que ser pleno.
O Estado medieval não conhecia poder absoluto, nem soberania - os poderes do
rei eram contrabalançados pelos da nobreza, das cidades e dos Parlamentos. Jean
Bodin, no século XVI, é o primeiro teórico a afirmar que no Estado deve haver
um poder soberano, isto é, um foco de autoridade que possa resolver todas as
pendências e arbitrar qualquer decisão. Hobbes
desenvolve essa idéia, e monta um Estado que é condição para existir a própria
sociedade. A sociedade nasce com o Estado, ou seja, para Hobbes a única maneira
de instituir um tal poder comum, capaz de defendê-los das invasões dos estrangeiros
e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança suficiente
para que, mediante seu próprio labor possam alimentar-se e viver satisfeitos, é
conferindo toda sua força e poder a um homem, ou a uma assembléia de homens,
que possa reduzir suas diversas vontades, por pluralidade de votos, a uma só
vontade. - Até esse ponto
poucos doutrinadores fundamentara a soberania estatal melhor do que Hobbes,
devido a isto, sua importância para a ciência politica é se torna notória.
Funcionamento
Estatal Hobbesiano.
Continuando aqui
ainda a teoria hobbesiana: Designar um homem ou uma assembleia de homens como
representante de suas pessoas, considerando-se e reconhecendo-se cada um como
autor de todos os atos que aquele que representa sua pessoa praticar ou levar a
praticar, em tudo o que disser respeito á paz e segurança comuns; todos
submetendo assim suas vontades à vontade do representante, e suas decisões à
sua decisão. Isto é mais do que consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira
unidade de todos eles, numa só e mesma pessoa, realizada por um pacto de cada
homem com todos os homens, de um modo que é como se cada homem dissesse a cada
homem: Cedo e transfiro meu direito de governar-me a mim mesmo a este homem,
ou a esta assembléia de homens, com a condição de transferires a ele teu
direito, autorizando de maneira semelhante todas as suas ações.
Feito isto, à
multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, ou em
latim civitas. É nele que consiste a essência do Estado, a qual
pode ser assim definida: Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão,
mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada um como
autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que
considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum.
Aquele que é
portador dessa pessoa se chama soberano, e dele se diz que possui poder
soberano. Todos os restantes são súditos." Por isso, o
poder do governante tem que ser ilimitado. Pois, se ele sofrer alguma limitação,
se o governante tiver de respeitar tal ou qual obrigação (por exemplo, tiver
que ser justo) - então quem irá julgar se ele está sendo ou não justo? Quem
julgar terá também o poder de julgar se o príncipe continua príncipe ou não - e
portanto será, ele que julga, a autoridade suprema. Ou seja, para Hobbes não há
alternativa: ou o poder é absoluto, ou continuamos na condição de guerra, entre
poderes que se enfrentam. Para montar o poder absoluto, Hobbes concebe um
contrato diferente, sui generis. Observemos que o soberano não
assina o contrato - este é firmado apenas pelos que vão se tornar súditos, não
pelo beneficiário. Por uma razão simples: no momento do contrato não existe
ainda soberano, que só surge devido ao contrato. Disso resulta que ele se conserva
fora dos compromissos, e isento de qualquer obrigação.
É desta
instituição do Estado que derivam todos os direitos e faculdades daquele
ou daqueles a quem o poder soberano é conferido mediante o consentimento do
povo reunido. Em primeiro lugar, na medida em que pactuam, deve entender-se que
não se encontram obrigados por um pacto anterior a qualquer coisa que
contradiga o atual. Consequentemente, aqueles que já instituíram um Estado,
dado que são obrigados pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de
alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo pacto no sentido de
obedecer a outrem, seja no que for, sem sua licença. Portanto, aqueles que
estão submetidos a um monarca não podem sem licença deste renunciar à
monarquia, voltando á confusão de uma multidão desunida. Por outro lado, cada
homem conferiu a soberania àquele que é portador de sua pessoa, portanto se o
depuserem estarão tirando-lhe o que é seu, o que também constitui injustiça.
Além do mais, se aquele que tentar depor seu soberano for morto, ou por ele
castigado devido a essa tentativa, será o autor de seu próprio castigo, dado
que por instituição é autor de tudo quanto seu soberano fizer. E, dado que
constitui injustiça alguém fazer coisa devido à qual possa ser castigado por
sua própria autoridade, também a esse título ele estará sendo injusto, dado que
o direito de representar a pessoa de todos é conferido ao que é tornado
soberano mediante um pacto celebrado apenas entre cada um e cada um, e não
entre o soberano e cada um dos outros, não pode haver quebra do pacto a parte
do soberano, portanto nenhum dos súditos pode libertar-se da sujeição, sob
qualquer pretexto de infração.
E ainda segundo
Hobbes, se a maioria, por voto de
consentimento, escolher um soberano, os que tiverem discordado devem passar a
consentir juntamente com os restantes. Ou seja, devem aceitar e reconhecer
todos os atos que ele venha a praticar, ou então serem justamente destruídos pelos
restantes. Aquele que voluntariamente ingressou na congregação dos que
constituíam a assembléia, declarou suficientemente com esse ato sua vontade (e
portanto tacitamente fez um pacto) de se conformar ao que a maioria decidir.
Portanto, se depois recusar aceitá-la, ou protestar contra qualquer de seus
decretos, age contrariamente ao pacto, isto é, age injustamente. E quer faça
parte da congregação, quer não faça, e que seu consentimento seja pedido, quer
não seja, ou terá que submeter-se a seus decretos ou será deixado na condição
de guerra em que antes se encontrava, e na qual pode, sem injustiça, ser
destruído por qualquer um.. Dado que todo súdito é por instituição autor de
todos os atos e decisões do soberano instituído, segue-se que nada do que este
faça pode ser considerado injúria para com qualquer de seus súditos, e que
nenhum deles pode acusá-lo de injustiça. Pois quem faz alguma coisa em virtude
da autoridade de um outro não pode nunca causar injúria àquele em virtude de
cuja autoridade está agindo.
Por esta
instituição de um Estado, cada indivíduo é autor de tudo quanto o soberano
fizer, por consequência aquele que se queixar de uma injúria feita por seu
soberano estar-se-á queixando daquilo de que ele próprio é autor, portanto não
deve acusar ninguém a não ser a si próprio; e não pode acusar-se a si próprio
de injúria, pois causar injúria a si próprio é impossível. É certo que os
detentores do poder soberano podem cometer iniquidades, mas não podem cometer
injustiça nem injúria em sentido próprio, e em consequência do que foi dito por
último, aquele que detém o poder soberano não pode justamente ser morto, nem de
qualquer outra maneira pode ser punido por seus súditos. Dado que cada súdito é
autor dos atos de seu soberano, cada um estaria castigando outrem pelos atos
cometidos por si mesmo."
A questão da
Igualdade e liberdade
Nesse Estado, em
que o poder é absoluto - perguntará o leitor - que papel caberão à liberdade e
á igualdade, estes grandes valores que aprendemos a respeitar? Ora, o que Hobbes faz é justamente
desmontar o valor retórico que atribuímos a palavras capazes de gerar tanto
entusiasmo, tanta ambição, descontentamento e guerra. A igualdade, já vimos, é
o fator que leva à guerra de todos, dizendo que os homens são iguais, Hobbes
não faz uma proclamação revolucionária contra o Antigo Regime (como fará a
Revolução Francesa: "Todos os homens nascem livres e iguais..."),
simplesmente afirma que dois ou mais homens podem querer a mesma coisa, e por
isso todos vivemos em tensa competição.
E a liberdade?
Hobbes vai defini-la de modo que também deixa de ser um valor. Liberdade significa, em
sentido próprio, a ausência de oposição (entendendo por oposição os
impedimentos externos do movimento); e não se aplica menos ás criaturas
irracionais e inanimadas do que às racionais. Porque de tudo o que estiver
amarrado ou envolvido de modo a não poder mover-se senão dentro de um certo
espaço, sendo esse espaço determinado pela oposição de algum corpo externo,
dizemos que não tem liberdade de ir mais além. E o mesmo se passa com todas as
criaturas vivas, quando se encontram presas ou limitadas por paredes ou
cadeiras; e também das águas, quando são contidas por diques ou canais, e se
assim não fosse se espalhariam por um espaço maior, costumamos dizer que não
têm a liberdade de se mover da maneira que fariam se não fossem esses
impedimentos externos. Mas
quando o que impede o movimento faz parte da constituição da própria coisa não
costumamos dizer que ela não tem liberdade, mas que lhe falta o poder de se
mover; como quando uma pedra está parada, ou um homem se encontra amarrado ao
leito pela doença. Conformemente a este significado próprio e geralmente aceito
da palavra, um homem
livre é aquele que, naquelas coisas que graças a sua força e engenho é capaz de
fazer, não é impedido de fazer o que tem vontade de fazer", ou seja,
Hobbes começa reduzindo a liberdade a uma determinação física, aplicável a
qualquer corpo. Com isso ele praticamente elimina o valor (a seu ver retórico)
da liberdade como um clamor popular, como um princípio pelo qual homens lutam e
morrem. Segundo ele é coisa
fácil os homens se deixarem iludir pelo especioso nome de liberdade e, por
falta de capacidade de distinguir, tomarem por herança pessoal e direito inato
seu aquilo que é apenas direito do Estado. E quando o mesmo erro é confirmado
pela autoridade de autores reputados por seus escritos sobre o assunto, não é
de admirar que ele provoque sedições e mudanças de governo.
Resta, porém,
uma liberdade ao homem. Hobbes explica que quando o indivíduo firmou o contrato
social, renunciou ao seu direito de natureza, isto é, ao fundamento jurídico da
guerra de todos. É que, neste direito, o meio (fazer o que julgasse mais
conveniente) contradizia o fim (preservar a própria vida). O homem percebeu
que, como todos tinham esse direito tanto quanto ele, o resultado só podia ser a
guerra - "e a vida do homem [era] solitária, pobre, sórdida, embrutecida e
curta". Mas, dando poderes ao soberano, a fim de instaurar a paz, o
homem só abriu mão de seu direito para proteger a sua própria vida. Se esse fim
não for atendido pelo soberano, o súdito não lhe deve mais obediência - não
porque o soberano violou algum compromisso (isso é impossível, pois o soberano
não prometeu nada), mas simplesmente porque desapareceu a razão que levava o
súdito a obedecer. Esta é a "verdadeira liberdade do súdito". Este
ponto é delicado, e devemos insistir nele. O soberano não perde a soberania se
não atende aos caprichos de cada súdito. Mas, se deixa de proteger a vida de
determinado indivíduo, este indivíduo (e só ele) não lhe deve mais sujeição. Os
outros não podem aliar-se ao desprotegido, porque o governante continua a
protegê-los. E pouco importa se o soberano fere o (ex-) súdito tendo ou não
razão (afinal, repetimos, ninguém pode julgar o soberano). O
soberano não está atado pelas leis humanas de justiça, por isso, de seu ponto
de vista, não há diferença em ele castigar um culpado ou agredir um inocente.
Já o súdito, se é súdito, é porque prometeu obedecer a fim de não morrer na
guerra generalizado; por isso, de seu ponto de vista tanto faz a sua vida ser ameaçada
por um soberano impiedoso e iníquo, quanto por um governante que o julgou
concedendo-lhe a mais ampla defesa. O que temos, em todos os casos, é o mesmo
esquema: um governante que fere e, por isso, um súdito que recupera sua
liberdade natural.
O Estado, e a
propriedade
O desconforto de
sua doutrina, em grande parte, deve-se à propriedade. A sociedade burguesa, que
no tempo de Hobbes já luta para se afirmar, estabelece a autonomia do
proprietário para fazer com seu bem o que bem entenda. Na Idade Média, a
propriedade era um direito limitado, porque havia inúmeros costumes e
obrigações que a controlavam. Por exemplo, o senhor de terras não podia impedir
o pobre de colher espigas, ou frutas, na proporção necessária para saciar a
fome. Se havia um servo ligado à gleba, nem este podia deixá-la, nem o senhor
podia expulsá-lo para dar outro uso à terra. Mas, nos tempos modernos, o
proprietário adquire o direito não só ao uso do bem e a seus frutos (que
somam-se na palavra usufruto), como também ao abuso: isto é, o direito de
alienar o bem, de destruí-lo, vendê-lo ou dá-lo. Hobbes reconhece o fim das
velhas limitações feudais à propriedade - e nisso ele está de acordo com as
classes burguesas, empenhadas em acabar com os direitos das classes populares à
terra comunal ou privada - mas, ao mesmo tempo, estabelece um limite muito
forte à pretensão burguesa de autonomia: todas as terras e bens devem ser
controladas pelo soberano.
"A
distribuição dos materiais dessa nutrição é a constituição do meu,
do teu e do seu. Isto é, numa palavra, da propriedade.
E em todas as espécies de Estado é da competência do poder soberano. Porque
onde não há Estado, conforme já se mostrou, há uma guerra perpétua de cada
homem contra seu vizinho, na qual portanto cada coisa é de quem a apanha e
conserva pela força, o que não é propriedade nem comunidade, mas
incerteza. O que é a tal ponto evidente que até Cícero (um apaixonado
defensor da liberdade), numa arenga pública, atribuiu toda propriedade às leis
civis: "Se as leis civis",, disse ele, "alguma vez forem
abandonadas, ou negligentemente conservadas (para não dizer oprimidas), não
haverá nada mais que alguém possa estar certo de receber de seus antepassados,
ou deixar a seus filhos". E também: "suprimi as leis civis, e ninguém
mais saberá o que é seu e o que é dos outros". Visto portanto que a
introdução da propriedade é um efeito do Estado, que anda pode
fazer a não ser por intermédio da pessoa que o representa, ela só pode ser um
ato do soberano, e consiste em leis que só podem ser feitas por quem tiver o
poder soberano. Bem o sabiam os antigos, que chamavam Nómos (quer
dizer, distribuição) ao que nós chamamos lei, e definiam a justiça
como a distribuição a cada um do que é seu”.
quinta-feira, julho 10, 2014
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