BEM VINDO
  • ALEXIS DE TOCQUEVILLE

    O grande drama tocquevilliano é buscar a solução sobre a questão da preservação da liberdade na igualdade.

  • ANALISE ECONOMICA DO DIREITO

    Economistas e juristas buscam em linguagens próprias o mesmo objetivo: uma sociedade melhor com um avanço do quadro de bem-estar social ou justiça.

  • THOMAS HOBBES

    Se dois homens desejam a mesma coisa, de modo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se inimigos. E no caminho para seu fim esforçam-se por se destruir ou subjugar um ao outro.

  • LUDWING VON MISSES

    O fato é que, no sistema capitalista, os chefes, em última instância, são os consumidores. Não é o estado, é o povo que é soberano.

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

A Maçonaria



"Uma vez dentro, você não pode sair". Essa é a frase mais associada de maneira errônea às sociedades secretas como um todo. O que ninguém nega é que todos, de uma maneira ou de outra, sentem fascínio em pertencer a um grupo fechado. Gera um sentimento de aceitação social que poucos artifícios modernos podem proporcionar.

O problema maior é tentar acabar com certas ideias, que ainda persistem no imaginário popular. Durante todos os anos nos quais me dediquei a pesquisar o assunto, encontrei as perguntas mais absurdas possíveis. Dentre elas, as mais memoráveis eram se rosacruzes produziam múmias, maçons bebiam sangue, templários eram exorcizados, e até mesmo se determinados membros das sociedades Thule e Skull and Bones poderiam misturar-se a nós, e nos controlar mentalmente.

São opiniões como essas que transformam as sociedades secretas em um assunto que beira o tabu. Tem tanta bobagem por aí que as pessoas passam a acreditar nelas como se fossem verdades incontestáveis. O Majestic 12 não foi provado como existente, os xamãs não violentam mulheres durante os sonhos, e o Priorado de Sião não guarda a linhagem de Jesus.

No entanto, se você está atrás de uma boa introdução ao assunto, está no lugar certo. Aqui, a palavra de ordem é uma só: desmistificação. Seja bem-vindo ao obscuro mundo das sociedades secretas. Nesse pequeno artigo apresentaremos algumas verdades sobre a Marçonaria. 

Hoje, com a publicação maciça de livros sobre o tema e com o advento da Internet - com sites que supostamente tratam do assunto, mas deixam claras suas opiniões tendenciosas -, o público se acostumou a chamar esses grupos de sociedades secretas, embora muitos hoje saibam quem eles são e até mesmo o que fazem. Por isso, vários pesquisadores consideram essas sociedades como "discretas", ou seja, elas existem e cuidam de seus assuntos, mas o acesso a seu núcleo continua restrito.

Estudar o tema, contudo, não se torna mais fácil. Pela própria aura que envolve a questão, a imagem que a maioria das pessoas tem é a de que as sociedades secretas são, em grande parte, compostas por grupos esotéricos. Muitos se esquecem de que um grupo desses pode ter uma finalidade prioritariamente política (como a Carbonária, por exemplo), ou mesmo criminosa (como a Máfia, ou a Ku Klux Klan).

Porém, ninguém pode negar que o rótulo "sociedades secretas" está um pouco defasado. Não que elas não existam nos dias de hoje (afinal, alguém deve saber definir o que vem a ser o Clube Bilderberg, ou qual o propósito dos Skull and Bones). O que acontece é que hoje, com o assunto permanentemente na mídia, seja por meio de notícias ou de documentários na TV paga, todos sabem que existem grupos como Templários, Maçonaria, Rosacruz ou Teosofia.

Ainda há o perigo de que as pessoas que estudam o assunto de maneira séria caiam no campo da teoria da conspiração. Basta observar os nomes do cenário político moderno e perceberemos algumas coincidências, como o fato de o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, ser maçom, ou do presidente norte-americano George W. Bush pertencer à Skull and Bones. E se nos concentrarmos na parte histórica, descobriremos mais associações famosas. Somente na Maçonaria temos nomes como o músico de jazz Louis Armstrong, o cineasta Walt Disney e até o ator de cinema Douglas Fairbanks, todos norte-americanos. Já a Rosacruz possui nomes como o do filósofo italiano Giordano Bruno, do escritor francês Victor Hugo e até o profeta Nostradamus. É claro que confirmar tais associações é mais complicado, pois o acesso aos registros de certas ordens é fechado ao público. Não é de se admirar que os rosacruzes originais do século XVII eram conhecidos como Os Invisíveis, já que todos sabiam da existência da ordem, mas ninguém podia apontar seus integrantes.

No entanto, outro ponto igualmente polêmico é a verdadeira razão para que essas sociedades sejam secretas. Muitos argumentam que o fato de vários participantes pagarem uma espécie de mensalidade, como acontece na Antiga e Mística Ordem Rosacruz (AMORC), ou na própria Maçonaria, retiraria de uma ordem a dedicação ao autoconhecimento. Tal aspecto de aprendizado não deveria ser cobrado; sem contar que alguém que já passou pela iniciação deveria ter livre acesso aos níveis de ensinamento.

Uma boa visita a alguns sites da Internet já esclarece muita coisa. No setor esotérico, não são poucas as páginas dedicadas a insultar o trabalho dessas ordens. A maioria desses sites é mantida por entidades ligadas a setores mais conservadores de igrejas como a católica e a evangélica. Numa dessas páginas, numa lista de maçons famosos, os autores não hesitaram a incluir o próprio Satã como "maçom principal". 

Se pensarmos bem, não é qualquer pessoa que está pronta a receber certos ensinamentos. Por exemplo, quando a descoberta do Evangelho de Judas foi divulgada, milhares de religiosos do tipo "radical" entraram em ação e mandaram cartas para revistas, sites e até programas da TV paga para "pedir que não acreditassem nessa mentira". Quando uma pessoa entra para uma sociedade secreta, ela aprende, acima de tudo, a respeitar um documento histórico sem o ponto de vista fanático-religioso, o que pode ajudar em sua maior compreensão. Com certeza, para os mais fanáticos, nada, a não ser o que está nos evangelhos canônicos, pode ser considerado.

MAÇONARIA 
Se sairmos às ruas para perguntar qual sociedade secreta as pessoas mais conhecem, a grande maioria responderá que é a Maçonaria. Muita gente já ouviu falar nesse grupo por diversas razões diferentes: por ser constituído só por homens, pelo fato de as pessoas só entrarem com convite, por seus componentes terem certa influência social ou econômica, ou mesmo pelas histórias fantasiosas a respeito de seus rituais de iniciação.

A verdade é que a Maçonaria é um dos grupos que podemos chamar de sociedade discreta, pois a maioria sabe de sua existência, a literatura publicada sobre o assunto é vasta e fácil de ser encontrada e, ainda por cima, seus componentes admitem suas afiliações. É fácil reconhecer quando um maçom está na ativa, pois há sempre entre seus pertences o famoso símbolo do compasso e do esquadro com a letra G no meio. Esse símbolo pode ser qualquer coisa, de um simples par de abotoadu ras a um broche colocado no painel do carro, de um enfeite de mesa de escritório a um quadro colocado em algum lugar da casa do maçom. 

O nome "Maçonaria" tem duas origens possíveis. Uma é a palavra francesa maçonnerie, enquanto a segunda é a palavra inglesa masonry, sendo que ambas significam construção. A origem histórica mais aceita é que esse grupo teria surgido a partir das antigas guildas de pedreiros e construtores medievais, que guardavam os segredos de sua profissão a sete chaves, e só os passavam para aqueles que eram aceitos como iguais. Esses construtores, por serem os principais responsáveis pelas belas catedrais espalhadas pelo continente europeu, de fato eram um grupo muito fechado e, por produzirem verdadeiras maravilhas arquitetônicas e terem o controle sobre os materiais usados para erigirem tais edifícios, eram considerados detentores de segredos.

Os três primeiros graus, de conhecimento público, e que têm a permissão dos próprios maçons para que sejam discutidos em público, guardam muita semelhança com os jargões dos pedreiros: Aprendiz (grau 1), Companheiro (grau 2) e Mestre (grau 3). Não importa qual rito a Loja Maçônica siga para realizar seus trabalhos, esses três são constantes para todos. Isso acontece, segundo uma das explicações, porque na Idade Média havia dois tipos de pedreiros: o pedreiro bruto (conhecido como rough mason), que trabalhava a pedra sem tirar sua forma ou dar polimento, e o pedreiro livre (free mason), que sabia como extrair daquela pedra bruta uma forma agradável e apresentável, para embelezar a construção.

A ideia pregada pela Maçonaria atual é exatamente a mesma, mas com a diferença de que o grupo teria abandonado suas atividades práticas (ou seja, as práticas da Maçonaria operativa) e se tornado uma entidade de cunho espiritual (conhecida como Maçonaria Especulativa). A pedra, nesse caso, torna-se a alma humana, que deverá ser desbaratada à medida que o maçom sobe de grau e recebe mais conhecimento, a ponto de assumir seu lugar de direito na construção dos maçons, a grande catedral composta pelas almas humanas esclarecidas. A construção, numa explicação análoga, estaria sob supervisão dos maçons de graus mais elevados, sendo que todos responderiam ao Grande Arquiteto do Universo, ou seja, Deus, representado pela letra G, que se posiciona, no brasão da ordem, entre os símbolos do esquadro e do compasso. palavra Deus inicia-se em vários idiomas: GAS em siríaco, GADA em persa, GUD em sueco, GOTTem alemão, GOD em inglês, entre outras. 

Falar sobre as origens da Maçonaria é uma tarefa ingrata. Qualquer um que se prestar a mergulhar nas diversas leituras sobre o assunto acabará com um verdadeiro nó na cabeça. Isso porque há muitas lendas que correm a respeito do assunto, e algumas delas chegam a afirmar coisas que, para os neófitos (ou não-iniciados), beiram o absurdo, como dizer que figuras históricas como Alexandre, o Grande, Júlio César e Ricardo Coração de Leão, além de algumas míticas, como o Rei Arthur, Noé, Moisés e até Jesus Cristo foram maçons.

O mais estranho de tudo é que, dependendo da pessoa com quem se conversa, descobrimos que há quem acredite nessas lendas. Uma delas, citada por maçons respeitáveis como Rizzardo da Camino e Joaquim Gervásio Figueiredo, afirma que a Maçonaria já existia antes mesmo da Criação do Mundo, e que havia uma Loja Maçônica em atividade no jardim do Éden.

Há ainda uma outra versão para o nome Maçonaria, mas mais difícil de ser verificada. Esta afirma que a palavra é de origem mais antiga, e vem do copta (língua que floresceu por volta do século 111 no Egito Antigo) Phree Messen, que significa filhos da luz.

DESENVOLVIMENTO DA MAÇONARIA MODERNA
Nos primeiros tempos, a Maçonaria reunia várias profissões, com predominância para a dos pedreiros. Como conservavam a influência da Igreja, cada profissão elegia seu padroeiro. Para os maçons, foram escolhidos dois: São João Batista e São João Evangelista, com posterior fixação em São João da Escócia. Depois disso, foram adotados sinais e palavras de passe que refletiam as influências cristãs da época.

A Inglaterra merece uma atenção especial porque foi lá que se agruparam os profissionais mais habilitados de toda a Europa, onde se intensificaram os trabalhos da Maçonaria Operativa. Na Eu ropa, os maçons operativos foram incentivados por reis ávidos em construir as magníficas obras que surgiram na França e na Itália. Começaram então a surgir as Lojas, até que no ano 926 instalou-se a Grande Loja de York, sob a direção do Grão-mestre Príncipe Edwin. Nascia, portanto, a primeira potência maçônica com adequada hierarquia, para o exercício do poder. Vários príncipes e a nata da sociedade inglesa se fizeram iniciar nas Lojas de sua jurisdição; surge então a primeira Loja maçônica cercada de privilégios, quase idênticos aos da Família Real. O próprio Rei Athelstan, pai de Edwin, e os papas não ocultavam o seu interesse protetor. "

Os tempos eram outros, e pertencer a uma ordem como a Maçonaria era encarado por diversos membros da nobreza como sinal de prestígio. Não era para menos: os responsáveis pela construção daquelas fantásticas obras de arte que eram as catedrais eram tidos como "as pessoas mais inteligentes do mundo", e, como tal, eram os formadores de opinião, aqueles que todos queriam ter como amigos. Logo a Loja de York criou seus próprios códigos e constituição, distribuindo-os às demais Lojas da Europa.

Em 1439, os maçons buscam a proteção do rei James II e, em 1542, de James V. É quando a Maçonaria começa a se afastar da Igreja "por entender que ela não agia como verdadeira religião". Com o fim das Cruzadas, as Lojas começaram a se multiplicar rapidamente em países como a Escócia, e voltam para o território inglês. Sua dissipa ção é tão forte que o rei manda buscar maçons italianos para juntá-los aos irmãos dos países.

É quando a Maçonaria começa a aceitar membros que não pertenciam às associações de artesãos e começa a se inclinar para o chamado "campo especulativo", ou seja, sai do campo material (construção de edifícios) para se concentrar no campo espiritual ("edificações espirituais"). 

A Grande Loja de Londres surge pouco tempo depois, como união de quatro Lojas (The Goose and Gridiron, lhe Crow, lhe Apple Tree e lhe Rummer and Grapes). O Grão-mestre é Anthony Sayer, que foi seguido por George Payne, responsável por ter sido o primeiro a juntar toda a documentação existente sobre a ordem e formar o primeiro regulamento, impresso em 1721. Dois anos depois, surge a primeira constituição da Maçonaria Especulativa, produzida pelo pastor evangélico James Anderson.

Acontece, por fim, uma cisão entre os seguidores das obrigações antigas e das, então, atuais. Quem não era a favor da nova constituição une-se para a fundação, em 1753, da Grande Loja dos Maçons Francos e Aceitos, situação que perdurou até 1813, quando houve uma reconciliação e uma fusão entre os dois grupos para a constituição da Grande Loja Unida dos Antigos Franco-Maçons da Inglaterra.

É necessário conhecer esses detalhes por um único motivo: muito do que se conhece hoje como a Maçonaria Especulativa mundial partiu dessas Lojas europeias. Para se ter uma ideia, há ainda hoje um grupo ligado à Maçonaria nacional que estuda atentamente os chamados Doze Pontos Originais da Maçonaria, formadores da base do sistema maçônico, marcando a cerimônia de iniciação. Vale lembrar que, teoricamente, sem a existência desses pontos, nenhum homem poderia ter sido legalmente aceito na ordem. Um texto sobre o assunto, de autoria de um maçom de Santa Catarina, que circula em listas de discussão maçônicas, diz que "toda pessoa que se tornou um maçom deve estudar essas doze formas da cerimônia, não somente no primeiro Grau, mas em cada um dos posteriores".

A iniciação era dividida em 12 partes, que simbolizavam as tribos de Israel. Eis os 12 pontos, segundo o texto:

•Primeira parte: a abertura da Loja era simbolizada pela tribo de Rubem, o primogênito de Jacó, que o chamava "o princípio de sua energia". Por conseguinte, era devidamente apropriada e adaptada como emblema dessa cerimônia, que é essencialmente o começo de toda iniciação.
•Segunda parte: a preparação do candidato era simbolizada pela tribo de Simeão, porque ele preparou os instrumentos de guerra para a luta com os Siquemitas; nessa parte da cerimônia são descritas essas armas. Era praticada como sinal de repulsa pela crueldade implacável que resultou desse incidente.
•Terceira parte: a informação fornecida refere-se à tribo de Levi, porque na guerra com os Siquemitas supõe-se que foi ele que deu o sinal de aviso a Simeão, seu irmão, com quem havia combinado de lutar contra esse povo.
•Quarta parte: a entrada do candidato na Loja simbolizava a tribo de Judá, a primeira a cruzar o rio Jordão e a penetrar na Terra Prometida. Eles saíram de um lugar de servidão e ignorância, assim como de solidão (o deserto por onde passaram) e agora, em Canaã, eles teriam luz e liberdade.
•Quinta parte: a invocação era simbolizada pela tribo de Zebulão. Jacó proporcionou a oração e a bênção a ele, e não a seu irmão, Issacar.
•Sexta parte: as viagens referem-se à tribo de Issacar, que, considerada indolente e inútil, necessitava de um diretor supremo como guia que a elevasse à mesma altura das outras tribos.
•Sétima parte: o avanço até o altar era simbolizado pela tribo de Daniel, para nos demonstrar, por oposição, que devemos avançar até a verdade e santidade rapidamente, e não fazer como essa tribo, que se lançou à idolatria, e cujo objeto de veneração era a serpente de cobre.
•Oitava parte: a obrigação refere-se à tribo de Gad, e diz respeito ao juramento solene feito por Jephthah, juiz de Israel, que pertencia a essa tribo.
•Nona parte: a confidência dos mistérios feita ao candidato era simbolizada pela tribo de Asher, porque era ele quem, então, recebia os ricos frutos do conhecimento maçônico, assim como Asher se dizia o herdeiro da fartura e dos esplendores reais.
•Décima parte: a investidura com a pele de cordeiro, o avental, pelo qual se declarava o candidato livre, refere-se à tribo de Neftali, investida por Moisés com uma liberdade singular, quando disse: "Oh! Neftali, recebei os benefícios, pois o Senhor os tem coberto com seus favores, e possuis, portanto, o Ocidente e o Sul".
•Décima primeira parte: a cerimônia do ângulo Nordeste da Loja refere-se a José, porque essa cerimônia nos recorda a parte mais rudimentar da Maçonaria, e também pelo motivo de que as duas metades das tribos Efraim e Manassés, das quais foi formada a tribo de José, são consideradas mais rudimentares que as demais.
•Décima segunda parte: o encerramento da Loja era simbolizado pela tribo de Benjamim, o filho caçula de Jacó, último feixe de sua energia.

MAÇONARIA NA HISTORIA DO BRASIL.
Muito já se falou sobre a influência da Maçonaria em eventos políticos. E a história do Brasil não escapa dessa tendência. A própria independência do país foi creditada à ação da Maçonaria, embora não esteja bem claro se o grupo em questão pertencia a Portugal, ou se era local. Porém, ao se julgar pelas supostas influências do grupo em diversos episódios da história nacional, que vão desde a Inconfidência Mineira a José Bonifácio de Andrade e Silva, é de se supor que a Maçonaria nacional tenha recebido uma boa dose de conhecimento vindo de sua contraparte portuguesa, influenciando pesadamente as mentes dos dirigentes da época.

Uma curiosidade salta aos olhos do leitor mais atento. Se Dom Pedro era maçom, por que ele teria proibido as sociedades secretas sob pena de morte? Não há muitas informações a respeito, mas podemos especular com base em alguns dados.

É fácil imaginar que, com a aceitação da Maçonaria por parte de setores como o clero, o poder do Imperador poderia se ver seriamente ameaçado. Daí sabermos porque tais atividades foram proibidas por um tempo. No entanto, como podemos perceber, logo voltariam a se unir, e com força redobrada.

O importante é lembrar a essência da Maçonaria Moderna, que pode ser observada em sete pontos capitais:
•um reconhecimento implícito da Universalidade da Verdade acima de toda opinião, crença ou convicção;
•a necessidade de obedecer a lei moral, como característica e condição sine qua non da qualidade de maçons;
•a prática da tolerância em matéria de crenças, opiniões e convicções;
•o respeito, o reconhecimento e a obediência às autoridades constituídas, desaprovando-se toda forma de insurreição ou rebeldia, ainda que isso não seja considerado um crime que mereça a expulsão da Loja;
•a necessidade de fazer nas Lojas um trabalho construtivo, buscando o que une os Irmãos e fugindo daquilo que os dividem;
•a prática de uma fraternidade sincera e efetiva, sem distinção de raça, nacionalidade e religião, deixando fora das Lojas todas as lutas, questões ou diferenças pessoais;
•considerar e julgar os homens por suas qualidades interiores, espirituais, intelectuais e morais, muito mais que pelas distinções exteriores da raça, posição social, nascimento e fortuna.

Muita bobagem já foi dita sobre a Maçonaria. Uma qualidade dessa ordem, entretanto, destaca-se: se a limparmos de todas as lendas, ainda é uma das sociedades secretas mais influentes de todos os tempos.




sexta-feira, 18 de julho de 2014

Os Federalistas: Remédios Republicanos para Males Republicanos.


"Publius":  Alexander Hamilton,  James Madison,  
“O Federalista” é fruto da reunião de uma serie de ensaios publicados na imprensa de Nova York em 1788, com o objetivo de contribuir para a ratificação da Constituição pelos Estados. Obra conjunta de três autores, Alexander Hamilton (1755 – 1804), James Madison (1751 -1836) e John Jay (1745 – 1859), os artigos eram assinados por Publius. Madison e Hamilton encontram-se entre os líderes do movimento que culminou na convocação da Convenção Federal, da qual foram membros. Quanto à elaboração da Constituição, Hamilton teve uma participação discreta, já que suas teses ultracentralizadoras foram prontamente rejeitadas. A James Madison, por outro lado, é creditada a maior contribuição individual na elaboração da Constituição, daí porque seja chamado de "Father of the Constitution" (Pai da Constituição).

Após a ratificação da Constituição, a presença dos autores de "O Federalista" na vida política norte-americana mantém-se de suma importância. Hamilton foi o primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos e um dos principais conselheiros políticos do presidente George Washington, a quem também esteve ligado John Jay, o primeiro presidente da Corte Suprema. Madison, junto com Jefferson, liderou a formação do Partido Republicano, pelo qual veio a ser eleito o quarto presidente dos Estados Unidos em 1808.

O acordo entre os autores de "O Federalista" não era absoluto e esteve diretamente relacionado aos objetivos dos artigos: a defesa da ratificação da Constituição. Não concordavam entre si em vários pontos, como também, em pontos específicos, tinham reservas quanto à Constituição proposta. Concordavam, no entanto, que a Constituição elaborada pela Convenção Federal oferecia um ordenamento político incontestavelmente superior ao vigente sob os Artigos da Confederação. Por partilharem deste diagnóstico, e por considerarem urgente para a sorte do país a adoção da nova Constituição, os autores de "O Federalista" projetaram escrever uma série de artigos onde a nova Constituição seria explicada e, ao mesmo tempo, refutadas as principais objeções de seus adversários.

A filosofia política da época, em especial a exposta por Montesquieu, era evocada pelos adversários da ratificação de uma nova constituição proposta. Montesquieu, apontava para a incompatibilidade entre governos populares (democráticos) e os tempos modernos. Na fundamentação apontavam sobre a necessidade de manter grandes exércitos e a predominância das preocupações com o bem-estar material, onde, faziam das grandes monarquias a forma de governo mais adequada ao espírito dos tempos e não uma republica democrática. Argumentavam também que as condições ideais exigidas pelos governos populares, um pequeno território e cidadãos virtuosos, amantes da pátria e surdos aos interesses materiais, não mais existiam. Se, por acaso, se formassem governos desta natureza, seriam presas fáceis de seus vizinhos militarizados, como comprovava a história européia.

O desafio teórico enfrentado por "O Federalista" era o de desmentir os dogmas arraigados de uma longa tradição. Tratava-se de demonstrar que o espírito comercial da época não impedia a constituição de governos populares e, tampouco, estes dependiam exclusivamente da virtude do povo ou precisavam permanecer confinados a pequenos territórios (como argumentava Montesquieu, você pode conferir Aqui). Os postulados dos Federalistas são literalmente invertidos, aumentar o território e o número de interesses são benéficos à sorte desta forma de governo. Em suma, pela primeira vez, a teorização sobre os governos populares deixava de se mirar nos exemplos da Antiguidade, iniciando-se, assim, sua teorização eminentemente moderna.



O moderno federalismo.
Um dos eixos estruturadores de "O Federalista" é o ataque à fraqueza do governo central instituído pelos Artigos da Confederação (no caso, o atual Estados Unidos, ainda era subordinado a Inglaterra). Em realidade, segundo afirma Hamilton em "O Federalista", n. 15, nem se chegou, propriamente, a criar um governo, uma vez que estavam ausentes as condições mínimas a garantir sua existência efetiva. Esta passagem esclarece o seu raciocínio:

“Como o Congresso não tinha poderes para exigir o cumprimento das leis que baixava, cuja aplicação e punição dos eventuais desobedientes ficava a cargo dos Estados, estas, a despeito do fato de serem constitucionais, não passavam de "recomendações que os Estados observavam ou ignoravam a seu bel-prazer".

A única forma de criar um governo central, que realmente mereça o nome de governo, seria capacitá-lo a exigir o cumprimento das normas dele emanadas. Para que tal se verificasse, seria necessário que a União deixasse de se relacionar apenas com os Estados e estendesse o seu raio de ação diretamente aos cidadãos. Em suma, o governo central se relacionaria não apenas com outros países, mas também com os estados membros que constituirá o País, sendo estes estados membros independentes entre si, mas subordinado a União.

A experiência histórica demonstrava que as confederações   haviam sido levadas à ruína pelas razões apresentadas por Hamilton (intende-se confederação, como sendo, um poder centralizado, no qual não se permite nenhuma autonomia aos estados subjugados). Insistir na formação de uma Confederação seria desconhecer as lições da história e se prender às conjecturas de Montesquieu, que via nestas a possibilidade de compatibilizar as qualidades positivas dos Estados grandes — a força — com a dos pequenos — a liberdade. Portanto, a Constituição proposta pelos Federalistas,  defendia a criação de uma nova forma de governo, até então não experimentada por qualquer povo ou defendida por qualquer autor. A Constituição proposta, pelos Federalistas, não era estritamente nacional ou federal, mas uma composição de ambos os princípios.

O termo federal, como nomeamos hoje esta forma de governo, entretanto, era até aquele momento, sinônimo de confederação. A distinção ficou a partir do ponto assinalado por Hamilton; enquanto em uma confederação o governo central só se relaciona com Estados, cuja soberania interna permanece intacta, em uma Federação esta ação se estende aos indivíduos, fazendo com que convivam dois entes estatais de estatura diversa, com a órbita de ação dos Estados definida pela Constituição da União. O federalismo nasce como um pacto político entre os Estados, fruto de esforços teóricos e negociação política. Um pacto político, digamos assim, fundante, pois, por seu intermédio, se constituí aos Estados Unidos enquanto nação.

Inspirados na reflexão de Montesquieu, calcada na história européia, os "Antifederalistas" apontavam para os riscos à liberdade inerentes a um grande Estado, cujas características os levava a se transformar em monarquias militarizadas. Frente a este quadro, propunham a formação de três ou quatro confederações como forma de respeitar o tamanho ideal dos governos populares. Hamilton, ao contrário, detectava nesta proposta o germe da competição comercial entre as diversas confederações. Para evitar as rivalidades comerciais, estas sim as causadoras da militarização e do fortalecimento do executivo, defendia o pacto federal. Este pacto favoreceria o desenvolvimento comercial dos Estados Unidos, formando uma nação de grande extensão territorial que não dependeria de grandes efetivos militares.



A separação dos poderes e a natureza humana

"Mas afinal, o que é o próprio governo senão o maior de todos os reflexos da natureza humana? Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governos."

Esta é praticamente a primeira afirmação de Madison enquanto a natureza do indivíduos, uma visão negativa e potencialmente negativa.  Para citar mais um exemplo, em "O Federalista" n. 6, Hamilton relembra que nunca se deve perder de vista o fato de os homens serem "ambiciosos, vingativos e rapaces". Segundo ele, pensar de modo diferente "seria ignorar o curso uniforme dos acontecimentos humanos e desafiar a experiência acumulada ao longo dos séculos''.

Trata-se de um recurso de argumentação utilizado para justificar a necessidade de criação do Estado. Controlar os detentores do poder porque, como observa Madison, os homens não são governados por anjos, mas sim por outros homens, daí porque seja necessário controlá-los. "Ao constituir-se um governo — integrado por homens que terão autoridade sobre outros homens — a grande dificuldade está em que se deve primeiro habilitar o governante a controlar os governados e, depois, obrigá-lo a controlar-se a si mesmo.

"As estruturas internas do governo devem ser estabelecidas de tal forma que funcionem como uma defesa contra a tendência natural de que o poder venha a se tornar arbitrário e tirânico. Sendo o homem o que é, segue-se que todo aquele que detiver o poder em suas mãos tende a dele abusar.”

Como afirma Madison;

"não se nega que o poder é, por natureza, usurpador, e que precisa ser eficazmente contido, a fim de que não ultrapasse os limites que lhe foram fixados". ("O Federalista", n. 48)

A limitação do poder, dada esta sua natureza intrínseca, só pode ser obtida pela contraposição a outro poder, isto é, o poder freando o poder. Neste ponto, "O Federalista" se aproxima de Montesquieu. Estas reflexões, como é sabido, fundamentam a teoria da separação dos poderes, enunciada por este autor. Apesar de se apoiar expressamente em Montesquieu, a exposição de Madison da teoria da separação dos poderes contém especificidades que merecem ser notadas.


O governo misto e a diferença de “separação de poderes”.
Para a literatura política do século XVIII, a Inglaterra era tomada como um caso comprobatório das qualidades do "governo misto". Segundo esta teoria, quando as funções de governo são distribuídas por diferentes grupos sociais — realeza, nobreza e povo —, o exercício do poder deixa de ser prerrogativa exclusiva de qualquer um dos grupos, forçando-os à colaboração, com o que a convivência civil é aprimorada e a liberdade preservada. O "governo misto", portanto, não é o mesmo que a "separação dos poderes", uma distribuição horizontal das três funções principais do Estado — a legislativa, a executiva e a judiciária — por órgãos distintos e autônomos. A correspondência entre o "governo misto" e a "separação dos poderes" pode ocorrer desde que cada força social seja responsável por uma das funções.

Por razões óbvias, o governo misto, era uma solução descartada nos Estados Unidos, onde as condições sociais para o "governo misto" estavam ausentes. Aliás, este não deixou de ser um problema para os colonos em luta com a Inglaterra, em geral, adeptos da teoria do "governo misto" como a mais eficaz defesa para a liberdade.

Thomas Paine por  exemplo, a rejeitar a teoria do "governo misto", qualificando-a de um mito, ao tempo que afirmavam que a verdadeira segurança para a liberdade de um povo encontrava-se em sua virtude. (Ainda que essa ideia de se espera apenas pela virtude, antes, já havia recebido varias criticas por diversos doutrinadores, até mesmo por Montesquieu), Thomas Paine, miravam-se nos exemplos da Antiguidade greco-romana, cujas condições, diziam, os americanos estariam a reproduzir. Entretanto, este era um argumento típico de parcela das fileiras "Antifederalistas", por contraditório que possa parecer, por este caminho também se estruturavam críticas claramente antipopulares. Se a sorte dos governos populares dependia exclusivamente da virtude do povo, os cidadãos americanos já estavam demonstrando estar a perdê-la. Alguns assim, propunham a volta à teoria do "governo misto", isto é, afirmavam que apenas pela introdução de corretivos aristocráticos a liberdade poderia ser salva na América.

"O Federalista" rejeitava estas duas soluções apresentada, procurando encontrar novas bases para o governo popular. Voltemos à separação dos poderes tal qual apresentada em "O Federalista" e vejamos quais suas relações com o ponto apresentado a cima:

A defesa da aplicação do princípio da separação de poderes encontra-se construída a partir de medidas constitucionais, garantias à autonomia dos diferentes ramos de poder, postos em relação um com os outros para que possam se controlar e frear mutuamente, referidas, em última análise, às características nada virtuosas dos homens, seus interesses e ambições pessoais por acumular poder. A ideia era a seguinte, "A ambição será incentivada para enfrentar a ambição, e os interesses pessoais serão associados aos direitos constitucionais."

A adoção do princípio da separação dos poderes justifica-se como uma forma de se evitar a tirania, onde todos os poderes se concentram nas mesmas mãos. Os diferentes ramos de poder precisam ser dotados de força suficiente para resistir às ameaças uns dos outros, garantindo que cada um se mantenha dentro dos limites fixados constitucionalmente. No entanto, um equilíbrio perfeito entre estas forças opostas, possível no comportamento dos corpos regidos pelas leis da mecânica, não encontra lugar em um governo (uma critica a ideia de Montesquieu, que pretendia comprovar que era possível fazer com que leis humanas, fosse tão precisas quanto leis físicas). “O Federalista” propunha que para cada forma de governo, haverá um poder necessariamente mais forte, de onde partem as maiores ameaças à liberdade. Em uma monarquia, tais ameaças partem do executivo, enquanto para as repúblicas, o legislativo se constitui na maior ameaça à liberdade, já que é a origem de todos os poderes e, em tese, pode alteraras leis que regem o comportamento dos outros ramos de poder. Daí porque sejam necessárias medidas adicionais para frear o seu poder. A instituição do Senado é defendida com este fim, uma segunda câmara legislativa composta a partir de princípios diversos daqueles presentes na formação da Câmara dos Deputados, sendo previsível que a ação de uma leve à moderação da outra. Outra forma de deter o poder legislativo se obtém pelo reforço dos outros poderes. O judiciário, necessariamente o ramo mais fraco porque destituído de poder de iniciativa, merece cuidados especiais para que sua autonomia seja garantida. Este é um ponto defendido com ênfase por Hamilton, que chega, em passagens de "O Federalista" n. 78, a atribuir à Corte Suprema o poder de interpretação final sobre o significado da Constituição. Esta importante atribuição da Corte Suprema, no entanto, não é defendida consistentemente por qualquer um dos três autores e veio a ser incorporada posteriormente às prerrogativas próprias à Corte Suprema.


As repúblicas e as facções.
"O Federalista" n. 10, de autoria de James Madison, é considerado o artigo mais importante de toda a série, merecendo as maiores atenções dos comentaristas. A razão desta celebridade encontra-se em sua discussão a respeito do mal das facções e das formas de enfrenta-lo. (grupos, distintos uns dos outros, com força na sociedade e interesses próprios, não voltado para o bem comum geral da população). Caracterizadas como a principal ameaça à sorte dos governos populares, tidas como forças negativas, no que segue os ensinamentos de uma sólida tradição, Madison inova ao defender que a sorte dos governos populares não depende da eliminação das facções, mas sim de encontrar formas de neutralizar os seus efeitos.

Montesquieu e Rousseau afirmavam que a sobrevivência das democracias era uma função direta da virtude dos cidadãos que a compunham. Sendo a virtude definida como a "renúncia a si próprio" em nome do "amor pelas leis e pela pátria", sua preservação estava na dependência direta da manutenção da igualdade social entre os cidadãos. Trata-se de uma igualdade na frugalidade, já que o luxo traria consigo, inevitavelmente, a ambição e os interesses particulares. Para Madison, tais postulações estabeleciam que as democracias só poderiam florescer onde as facções fossem eliminadas. Madison rejeita esta solução, tida como não factível em um governo livre. As causas das facções encontram-se semeadas na própria natureza humana, nascendo do livre desenvolvimento de suas faculdades. A diversidade de crenças, opiniões e de distribuição da propriedade decorre da liberdade dos homens de disporem de seus próprios direitos. Vale observar que entre estes direitos, Madison destaca o da propriedade, a principal fonte diferenciadora dos homens e, por isto mesmo, a fonte mais comum e duradoura das facções. Proteger o direito de autodeterminação dos homens, isto é, proteger a sua liberdade, é o objetivo primordial dos governos, sua razão de ser. Neste ponto encontra-se explicitado o comprometimento de Madison com o credo liberal. Busca-se constituir um governo limitado e controlado para assegurar uma esfera própria para o livre desenvolvimento dos indivíduos, em especial de suas atividades econômicas.

Se as facções são inevitáveis, o problema passa a ser o de impedir que um dos diferentes interesses ou opiniões presentes na sociedade venha a controlar o poder com vistas à promoção única e exclusiva de seus objetivos. O princípio da decisão por maioria, regra fundamental dos governos populares, passa a representar uma ameaça aos direitos das facções minoritárias, já que elas precisam de um número maior de votação para chegarem ao poder.

É fato que à maioria das pessoas aplica-se o princípio da tendência natural ao abuso do poder quando este não encontra freios diante de si, porém é o que naturalmente tende a acontecer nas democracias puras, onde poucas facções se defrontam e facilmente a majoritária controla todo o poder (por conseguir um número maior de votos). Feita esta observação chega-se a um problema paradoxal para a teorização da democracia: o maior risco de que ela degenere em tirania radica-se no poder que confere à maioria. Observe que a tendência de uma facção controlar o poder é totalmente possível, caso umas delas venha a vencer as eleições, e observe que eleições é um das caraterísticas das Republicas, de forma que não seria possível eliminar as eleições, ou seja, não pode contraditar a regra definitória da forma de governo, se o fizer, logicamente, o governo deixaria de ser republicano. Vejamos o remédio proposto por Madison.

A raiz desta inversão de expectativas, quanto as facções, deve-se à nova espécie de governo popular que defendia: a república. A distinção entre as repúblicas e as democracias puras traz vantagens à primeira em dois pontos capitais. Primeiro, fazendo com que as funções de governo sejam delegadas a um número menor de cidadãos e, segundo, aumentando a área e o número de cidadãos sob a jurisdição de um único governo. À primeira vista, a primeira distinção, ao instituir a representação, traz, automaticamente, as respostas procuradas por Madison para soluciona o problema. Em função do "filtro" que institui, entregando o leme do Estado a homens imunes ao partidarismo, sempre aptos a discernir e optar pelos verdadeiros interesses do povo, a representação eliminaria o mal das facções, no entanto, seguir esta trilha é cair em uma armadilha do texto, é não prestar atenção ao comentário seguinte de Madison, afirmando a probabilidade de se verificar o resultado inverso, isto é, de que pessoas de espírito faccioso e com propósitos sinistros conseguissem obter os votos do povo para depois traí-lo. Segue que a representação, em si, não oferece as garantias suficientes para sanar o mal das facções.

Como afirma o próprio Madison, à segunda característica distintiva das repúblicas deve-se a principal contribuição para evitar o mal das facções. Sob um território mais extenso e com um número maior de cidadãos cresce o número de interesses em conflito, de tal sorte que ou não existe um interesse que reúna a maioria dos cidadãos, ou, na pior das hipóteses, será difícil que se organize para agir. Ou seja, através da multiplicação das facções chega-se à sua neutralização recíproca, tornando impossível o controle exclusivo do poder por uma facção. Impede-se, assim, que qualquer interesse particular tenha condições de suprimir a liberdade.

Conforme afirma, a preocupação central da legislação moderna é a de fornecer os meios para a coordenação dos diferentes interesses em conflito. Levar à coordenação dos interesses é a marca distintiva das repúblicas por oposição à violência do conflito entre facções características das democracias populares. Ante o bloqueio mútuo das partes, a coordenação aparece como a única alternativa para decisão dos conflitos, o interesse geral se impondo como a única alternativa. Segundo as próprias palavras de Madison. 

“Em uma república com a extensão territorial dos Estados Unidos e com a enorme variedade de interesses, partidos e seitas que engloba, a coalizão de uma maioria da sociedade dificilmente poderia ocorrer com base em quaisquer outros princípios que não os da justiça e do bem comum.”

sexta-feira, 11 de julho de 2014

Niccolo Maquiavel - Aos amigos os favores, aos inimigos a lei.

Os que vencem não importa como vencem,  nunca conquista a vergonha. 


Mais de quatro séculos nos separam da época em que viveu Maquiavel. Muitos leram e comentaram sua obra, mas um número consideravelmente maior de pessoas evoca seu nome ou pelo menos os termos que aí têm sua origem. Maquiavélico e maquiavelismo são adjetivo e substantivo que estão tanto no discurso erudito, no debate político, quanto na fala do dia-a-dia. Seu uso extrapola o mundo da política e habita sem nenhuma cerimónia o universo das relações privadas. Em qualquer de suas acepções, porém, o maquiavelismo está associado à ideia de perfídia, a um procedimento astucioso, velhaco, traiçoeiro. Estas expressões pejorativas sobreviveram de certa forma incólumes no tempo e no espaço, apenas alastrando-se da luta política para as desavenças do cotidiano. Assim, a acusação que recai hoje sobre Maquiavel não difere substancialmente daquela que lhe impingiu Shakespeare ao chamá-lo de "The Murderous", ou de sua identificação com o diabo na era vitoriana, ou mesmo da incriminação que os jesuítas faziam aos protestantes na época da Reforma, considerando-os discípulos de Maquiavel. Como assinala Claude Lefort, em sua análise sobre o uso abrangente multi direcional de tais acusações, o maquiavelismo serve a todos os ódios, metamorfoseia-se de acordo com os acontecimentos, já que pode ser apropriado por todos os envolvidos em disputa. É uma forma de desqualificar o inimigo, apresentando-o sempre como a encarnação do mal. Personificando a imoralidade, o jogo sujo e sem escrúpulos, o "maquiavelismo", ou melhor, o "antimaquiavelismo" tornou-se mais forte do que Maquiavel. É um mito que sobrevive independente do conhecimento do autor ou da obra onde teve origem.

A contra face da versão expressa no "autor maldito", responsabilizado por massacres e por toda sorte de sordidez. Houve também um certa tentativa de desconstrução deste retrato ao qual  acorreram a filósofos da estatura de um Rousseau, de um Spinoza, de um Hegel, para citarmos apenas os primeiros. Nesta interpretação sustenta-se enfaticamente que Maquiavel discorreu sobre a liberdade, ao oferecer preciosos conselhos para a sua conquista ou salvaguarda. Rousseau, por exemplo, opondo-se aos intérpretes "superficiais ou corrompidos" do autor florentino, que o qualificaram como mestre da tirania e da perversidade, afirma: "Maquiavel, fingindo dar lições aos Príncipes, deu grandes lições ao povo" {Do contrato social, livro 3, cap. IV).

Maquiavel ora apresentado como mestre da maldade, ora como o conselheiro que alerta os dominados contra a tirania, quem era este homem capaz de provocar tanto ódio, mas também tanto amor? Que ideias elaborou que o tornam o mais citado entre os pensadores políticos, a ponto de suscitar as mais díspares interpretações, e de sair das páginas dos livros eruditos para ocupar um lugar na fala mais vulgar? Por que incitou tamanho temor, sendo sua obra mais conhecida colocada no Index da Igreja, e por que continua a dar ensejo a tão fundos preconceitos?

As desventuras de um florentino
Maquiavel nasceu em Florença em 3 de maio de 1469, numa Itália "esplendorosa mas infeliz'', no dizer do historiador Garin. A península era então constituída por uma série de pequenos Estados, com regimes políticos, desenvolvimento económico e cultura variados. Tratava-se, a rigor, de um verdadeiro mosaico, sujeito a conflitos contínuos e alvo de constantes invasões por parte de estrangeiros. Até 1494, graças aos esforços de Lourenço, o Magnífico, a península experimentou uma certa tranquilidade. Cinco grandes Estados dominavam o mapa político: ao sul, o reino de Nápoles, nas mãos dos Aragão; no centro, os Estados papais controlados pela Igreja e a república de Florença, presidida pelos Médicis; ao norte, o ducado de Milão e a república de Veneza. Nos últimos anos do século, entretanto, a desordem e a instabilidade eram incontroláveis. Às dissensões internas e entre regiões somaram-se as invasões das poderosas nações vizinhas, França e Espanha. Assim, os Médicis são expulsos de Florença; acirram-se as discórdias entre Milão e Nápoles; os domínios da Igreja passam a ser governados por Alexandre VI, um papa espanhol da família Borgia, guiado por ambições sem limites; o rei Carlos VIII, da França, invade a península e consegue dominá-la de Norte a Sul. Pouco tempo depois, com a morte do papa Alexandre VI, o trono é ocupado por Júlio II, que se alia primeiro aos franceses contra Veneza e em seguida, em 1512, funda a Santa Liga contra a França. Neste cenário conturbado, no qual a maior parte dos governantes não conseguia se manter no poder por um período superior a dois meses, Maquiavel passou sua infância e adolescência. Sua família não era nem aristocrática, nem rica. Seu pai, advogado, como um típico renascentista, era um estudioso das humanidades, tendo se empenhado em transmitir uma aprimorada educação clássica para seu filho. Dessa forma, com orgulho, noticiava a um amigo que Nicolau, com apenas 12 anos, já redigia no melhor estilo em latim, dominando a retórica greco-romana.

Como o próprio Maquiavel afirmava seus textos são os que resultam de sua experiência prática e do convívio com os clássicos. “O Príncipe” data dos anos de 1512 a 1513; Os “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio”, de 1513 a 1519; o livro sobre a “Arte da guerra”, de 1519 a 1520; e, por último, sua “História de Florença”, de 1520 a 1525. Ao lado destas publicações, escreveu a comédia “A mandrágora”, considerada obra-prima do teatro italiano; uma biografia sobre Castruccio Castracani e uma coleção de poesias e ensaios literários.

Depois da redação de O príncipe, a vida de Maquiavel é marcada por uma contínua alternância de esperanças e decepções. Para conseguir os favores dos Médicis dedica-lhes seu livro e pede a intervenção de amigos. Os governantes são pouco sensíveis aos apelos — para os tiranos ele é um republicano. Finalmente, em 1520, a Universidade de Florença, presidida pelo cardeal Júlio de Médicis, encarrega-o de escrever sobre Florença. Desta incumbência nasce sua última obra e também sua última frustração. Pois, com a queda dos Médicis em 1527 e a restauração da república, Maquiavel, que imaginara terem assim findados seus infortúnios, vê-se identificado pelos jovens republicanos como alguém que possuía ligações com os tiranos depostos, já que deles recebera a tarefa de escrever sobre sua cidade. Desta vez, viu-se vencido. Esgotaram-se suas forças. A república considerou-o seu inimigo. Desgostoso, adoece e morre em junho.

A verdade efetiva das coisas
O destino determinou que eu não saiba discutir sobre a seda, nem sobre a lã; tampouco sobre questões de lucro ou de perda. Minha missão é falar sobre o Estado. Será preciso submeter-me à promessa de emudecer, ou terei que falar sobre ele. (Carta a F. Vettori, de 13/03/1513.)

Este trecho de uma carta escrita por Maquiavel revela sua "pre-destinação" inarredável: falar sobre o Estado. De fato, sua preocupação em todas as suas obras é o Estado. Não o melhor Estado, aquele tantas vezes imaginado, mas que nunca existiu. Mas o Estado real, capaz de impor a ordem. Maquiavel rejeita a tradição idealista de Platão, Aristóteles e Santo Tomás de Aquino e segue a trilha inaugurada pelos historiadores antigos, como Tácito, Políbio, Tucídides e Tito Lívio. Seu ponto de partida e de chegada é a realidade concreta. Daí a ênfase na verdade efetiva das coisas. Esta é sua regra metodológica: ver e examinar a realidade tal como ela é e não como se gostaria que ela fosse. A substituição do reino do dever ser, que marcara a filosofia anterior, pelo reino do ser, da realidade, leva Maquiavel a se perguntar: como fazer reinar a ordem, como instaurar um Estado estável? O problema central de sua análise política é descobrir como pode ser resolvido o inevitável ciclo de estabilidade e caos.

Ao formular e buscar resolver esta questão, Maquiavel provoca uma ruptura com o saber repetido pelos séculos. Trata-se de uma indagação radical e de uma nova articulação sobre o pensar e fazer política, que põe fim à ideia de uma ordem natural e eterna. A ordem, produto necessário da política, não é natural, nem a materialização de uma vontade extraterrena, e tampouco resulta do jogo de dados do acaso. Ao contrário, a ordem tem um imperativo: deve ser construída pelos homens para se evitar o caos e a barbárie, e, uma vez alcançada, ela não será definitiva, pois há sempre, em germe, o seu trabalho em negativo, isto é, a ameaça de que seja desfeita. "Enveredando por um caminho ainda não trilhado", como reconhece explicitamente nos Discursos, o autor florentino reinterpreta a questão da política.

Ela é o resultado de feixes de forças, proveniente das açòes concretas dos homens em sociedade, ainda que nem todas as suas facetas venham do reino da racionalidade e sejam de imediato reconhecíveis. Ao perceber o que há de transitório e circunstancial no arranjo estabelecido em uma determinada ordem, monta um enigma para seus contemporâneos. Enigma que se recoloca incessantemente e que a cada significado encontrado remete a outra significação para além de si. Este pensamento em constante transmutação e fluxo, que determina seu curso pelo movimento da realidade, transformará Maquiavel num clássico da filosofia política, atraindo a atenção e esforços de compreensão de seus leitores de todos os tempos. Tem-se sempre a sensação de que é necessário ler, reler, e voltar a ler a obra e que são infindáveis as suas possibilidades de formalização. Sua armadilha é atraente — fala do poder que todos sentem, mas não conhecem. Porém, para conhecê-lo é preciso suportar a ideia da incerteza, da contingência, de que nada é estável e que o espaço da política se constitui e é regido por mecanismos distintos dos que norteiam a vida privada. E mais ainda: o mundo da política não leva ao céu, mas sua ausência é o pior dos infernos.

Por outro lado, a forma que usa para expor suas ideias exige atenção. Não só porque recoloca e problematiza velhos temas, mas sobretudo porque rediscute-os incessantemente, obrigando o leitor a pôr sempre em xeque a primeira compreensão. Por isso, qualquer tentativa de sistematizar os escritos de Maquiavel é sempre provisória e sujeita a novas interpretações. Vale assim, para os seus escritos, a mesma metodologia que usava para ler a realidade e, afinal, de há muito sua obra deixou de ser apenas uma referência de erudição ilustrada. Pelo que significa e tem significado nas práticas históricas é ela própria simultaneamente um monumento e um instrumento político, retornando sempre como um enigma complexo que só pode ser decifrado pela análise de sua presença concreta e sua venta effettuale (verdade efetiva). Isto posto, ocupemo-nos do exame de alguns temas vitais para a compreensão da intrincada construção do pensamento de Maquiavel. E claro que este é apenas um ângulo possível num prisma multifacetado.

Natureza humana e historia
Guiado pela busca da "verdade efetiva", Maquiavel estuda a história e reavalia sua experiência como funcionário do Estado. Seu "diálogo" com os homens da antiguidade clássica e sua prática levam-no a concluir que por toda parte, e em todos os tempos, pode-se observar a presença de traços humanos imutáveis. Daí afirmar, os homens "são ingratos, volúveis, simuladores, covardes ante os perigos, ávidos de lucro" {O príncipe, cap. XVII). Estes atributos negativos compõem a natureza humana e mostram que o conflito e a anarquia são desdobramentos necessários dessas paixões e instintos malévolos. Por outro lado, sua reiterada permanência em todas as épocas e sociedades transformam a história numa privilegiada fonte de ensinamentos. Por isso, o estudo do passado não é um exercício de mera erudição, nem a história um suceder de eventos em conformidade com os desígnios divinos até que chegue o dia do juízo final, mas sim um desfile de fatos dos quais se deve extrair as causas e os meios utilizados para enfrentar o caos resultante da expressão da natureza humana. Desta forma, sustenta o pensador florentino, aquele que estudar cuidadosamente o passado pode prever os acontecimentos que se produzirão em cada Estado e utilizar os mesmos meios que os empregados pelos antigos. Ou então, se não há mais os remédios que já foram empregados, imaginar outros novos, segundo a semelhança dos acontecimentos. (Discursos, livro I. cap. XXXIX.) A história é cíclica, repete-se indefinidamente, já que não há meios absolutos para "domesticar" a natureza humana. Assim, a ordem sucede à desordem e esta, por sua vez, clama por uma nova ordem. Como, no entanto, é impossível extinguir as paixões e os instintos humanos, o ciclos se repete. O que pode variar — e nesta variação encontra-se o âmago da capacidade criadora humana e, portanto, da política — são os tempos de duração das formas de convívio entre os homens. O poder político tem, pois, uma origem mundana. Nasce da própria "malignidade" que é intrínseca à natureza humana. Além disso, o poder aparece como a única possibilidade de enfrentar o conflito, ainda que qualquer forma de "domesticação" seja precária e transitória. Não há garantias de sua permanência. A perversidade das paixões humanas sempre volta a se manifestar, mesmo que tenha-permanecido oculta por algum tempo.

Para mudar tal situação não é um ditador; é, mais propriamente, um fundador do Estado, um agente da transição numa fase em que a nação se acha ameaçada de decomposição. Quando, ao contrário, a sociedade já encontrou formas de equilíbrio, o poder político cumpriu sua função regeneradora e "educadora", ela está preparada para a República.

Neste regime, que por vezes o pensador florentino chama de liberdade, o povo é virtuoso, as instituições são estáveis e contemplam a dinâmica das relações sociais. Os conflitos são fonte de vigor, sinal de uma cidadania ativa, e portanto são desejáveis. Face à Itália de sua época — dividida, corrompida, sujeita às invasões externas — Maquiavel não tinha dúvidas: era necessário sua unificação e regeneração. Tais tarefas tornavam imprescindível o surgimento de um homem virtuoso capaz de fundar um Estado. Era preciso, enfim, um príncipe.

Anarquia x Principado e Republica
À desordem proveniente da imutável natureza humana, Maquiavel acresce um importante fator social de instabilidade: a presença inevitável, em todas as sociedades, de duas forças opostas, "uma das quais provém de não desejar o povo ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir o povo" {O príncipe, cap. IX).

Note-se que uma das forças quer dominar, enquanto a outra não quer ser dominada. Se todos quisessem o domínio, a oposição seria resolvida pelo governo dos vitoriosos. Contudo, os vitoriosos não sufocam definitivamente os vencidos, pois estes permanecem não querendo o domínio. O problema político é então encontrar mecanismos que imponham a estabilidade das relações, que sustentem uma determinada correlação de forças. Maquiavel sugere que há basicamente duas respostas à anarquia decorrente da natureza humana e do confronto entre os grupos sociais:, o Principado e a República. A escolha de uma ou de outra forma institucional não depende de um mero ato de vontade ou de considerações abstratas e idealistas sobre o regime, mas da situação concreta. Assim, quando a nação encontra-se ameaçada de deterioração, quando a corrupção alastrou-se, é necessário um governo forte, que crie e coloque seus instrumentos de poder para inibir a vitalidade das forças desagregadoras e centrífugas. O príncipe.

Virtù X fortuna
A crença na predestinação dominava há longo tempo. Este era um dogma que Maquiavel teria que enfrentar, por mais fortes que fossem os rancores que atraísse contra si. Afinal, a atividade política, tal como arquitetara, era uma prática do homem livre de freios extraterrenos, do homem sujeito da história. Esta prática exigia virtú, o domínio sobre a fortuna.

Para pensar a virtú e a fortuna mais uma vez Maquiavel recorre aos ensinamentos dos historiadores clássicos, buscando contrapô-los aos preceitos dominantes na Itália seiscentista. Para os antigos, a Fortuna não era uma força maligna inexorável. Ao contrário, sua imagem era a de uma deusa boa, uma aliada potencial, cuja simpatia era importante atrair. Esta deusa possuía os bens que todos os homens desejavam: a honra, a riqueza, a glória, o poder. Mas como fazer para que a deusa Fortuna nos favorecesse e não a outros, perguntavam-se os homens da antiguidade clássica? Era imprescindível seduzi-la, respondiam. Como se tratava de uma deusa que era também mulher, para atrair suas graças era necessário mostrar-se um homem de verdadeira virilidade, de inquestionável coragem. Assim, o homem que possuísse virtú no mais alto grau seria beneficiado com os presentes da cornucópia da Fortuna. Esta visão foi inteiramente derrotada com o triunfo do cristianismo. A boa deusa, disposta a ser seduzida, foi substituída por um "poder cego", inabalável, fechado a qualquer influência, que distribui seus bens de forma indiscriminada. A Fortuna não tem mais como símbolo a cornucópia, mas a roda do tempo, que gira indefinidamente sem que se possa descobrir o seu movimento. Nessa visão, os bens valorizados no período clássico nada são. O poder, a honra, a riqueza ou a glória não significam felicidade. Esta não se realiza no mundo terreno. O destino é uma força da providência divina e o homem sua vítima impotente. Maquiavel inicia o penúltimo capítulo de O príncipe referindo-se a esta crença na fatalidade e à impossibilidade dos homens alterarem o seu curso. Chega, inclusive, com certa ironia, a afirmar que se inclinou a concordar com essa opinião. No entanto, o desenrolar de sua exposição mostra-nos, com toda clareza, que se trata de uma concordância meramente estratégica. Concorda para poder desenvolver os argumentos da discordância. Assim, após admitir o império absoluto da Fortuna, reserva, poucas linhas a seguir, ao livre-arbítrio pelo menos o domínio da metade das ações humanas. E termina o capítulo demonstrando a possibilidade da virtú conquistar a fortuna.

Assim, Maquiavel monta um cenário no qual a liberdade do homem é capaz de amortecer o suposto poder incontrastável da Fortuna. Ou melhor dizendo, ao se indagar sobre a possibilidade de se fazer uma aliança com a Fortuna, esta não é mais uma força impiedosa, mas uma deusa boa, tal como era simbolizada pelos antigos. Ela é mulher, deseja ser seduzida e está sempre pronta a entregar-se aos homens bravos, corajosos, aqueles que demonstram ter virtú. Não cabe nesta imagem a ideia da virtude cristã que prega uma bondade angelical alcançada pela libertação das tentações terrenas, sempre à espera de recompensas no céu. Ao contrário, o poder, a honra e a glória, típicas tentações mundanas, são bens perseguidos e valorizados. O homem de virtú pode consegui-los e por eles luta. Dessa forma, o poder que nasce da própria natureza humana e encontra seu fundamento na força é redefinido. Não se trata mais apenas da força bruta, da violência, mas da sabedoria no uso da força, da utilização virtuosa da força. O governante não é, pois, simplesmente o mais forte — já que este tem condições de conquistar mas não de se manter no poder —, mas sobretudo o que demonstra possuir virtú, sendo assim capaz de manter o domínio adquirido e se não o amor, pelo menos o respeito dos governados.

A partir destas variáveis pode-se retornar, mais uma vez, ao início de O príncipe e dar um novo significado à distinção aparentemente formal entre os principados hereditários e os novos. Maquiavel sublinha que o poder se funda na força mas é necessário virtú para se manter no poder; mais nos domínios recém-adquiridos do que naqueles há longo tempo acostumados ao governo de um príncipe e sua família.

No entanto, nem mesmo o principado hereditário é seguro. Sua advertência — não há garantias de que o domínio permaneça — vale para todas as formas de organização do poder. Um governante virtuoso procurará criar instituições que "facilitem" o domínio. Consequentemente, sem virtú, sem boas leis, geradoras de boas instituições, e sem boas armas, um poder rival poderá impor-se. Destes constrangimentos não escapam nem mesmo os principados hereditários que pareciam a princípio tão seguros. Afora isto, como sustentar a radical distinção entre os principados antigos e os novos, se ambos têm igual origem — a força? A força explica o fundamento do poder, porém é a posse de virtú a chave por excelência do sucesso do príncipe. Sucesso este que tem uma medida política: a manutenção da conquista. O governante tem que se mostrar capaz de resistir aos inimigos e aos golpes da sorte, "construindo diques para que o rio não inunde a planície, arrasando tudo o que encontra em seu caminho". O homem de virtú deve atrair os favores da cornucópia, conseguindo, assim, a fama, a honra e a glória para si e a segurança para seus governados. É desta perspectiva que ganha um novo sentido a discussão sobre as qualidades do príncipe. Este deveria ser bom, honesto, liberal, cumpridor de suas promessas, conforme rezam os mandamentos da virtude cristã? Maquiavel é incisivo: há vícios que são virtudes. Não tema pois o príncipe que deseje se manter no poder "incorrer no opróbrio dos defeitos mencionados, se tal for indispensável para salvar o Estado". (O príncipe, cap. XV). Os ditames da moralidade convencional podem significar sua ruína. Um príncipe sábio deve guiar-se pela necessidade — "aprender os meios de não ser bom e a fazer uso ou não deles, conforme as necessidades". Assim, a qualidade exigida do príncipe que deseja semanter no poder é sobretudo a sabedoria de agir conforme as circunstâncias. Devendo, contudo, aparentar possuir as qualidades valorizadas pelos governados. O jogo entre a aparência e a essência sobrepõe-se à distinção tradicional entre virtudes e vícios. A virtú política exige também os vícios, assim como exige o reenquadramento da força. O agir virtuoso é um agir como homem e como animal. Resulta de uma astuciosa combinação da virilidade e da natureza animal. Quer como homem, quer como leão (para amedrontar os lobos), quer como raposa (para conhecer os lobos), o que conta é "o triunfo das dificuldades e a manutenção do Estado. Os meios para isso nunca deixarão de ser julgados honrosos, e todos os aplaudirão"{O príncipe, cap. XVIII).

A política tem uma ética e uma lógica próprias. Maquiavel descortina um horizonte para se pensar e fazer política que não se enquadra no tradicional moralismo piedoso. A resistência à aceitação da radicalidade de suas proposições é seguramente o que dá origem ao "maquiavélico". A evidência fulgurante deste adjetivo acaba velando a riqueza das descobertas substantivas. O mito, uma constante em sua obra, é falado para ser desmistificado. Maquiavel não o aceita como quer a tradição — algo naturalizado e eterno. Recupera no mito as questões que aí jaziam adormecidas e pacificadas. E, ao fazer isto, subverte as concepções acomodadas, de há muito estabelecidas, instaurando a modernidade no pensar a política. Ora, desmistificar tem sempre um alto risco. O cidadão florentino pagou-o em vida e sua morte não lhe trouxe o descanso do esquecimento. Transformado em mito, é novamente vitimizado. O pensamento político moderno e critico, para decifrar o enigma proposto em sua obra, precisa resgatá-lo sem preconceitos e em sua verità effettuale. É o que se deve a Nicolau Maquiavel, o cidadão sem fortuna, o intelectual de virtú.




 
Copyright © 2013 Panorama Conceitual
    Twitter Facebook Google Plus Vimeo Flickr YouTube