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domingo, 22 de julho de 2012

Kant: O Hiperativo Categórico, A Moral Universal.


Kant: A liberdade, o individuo e a moral.

Conta-se que as donas de casa de Königsberg, na Prússia, acertavam seus relógios pela passagem de Kant pelas ruas. Verdade ou não, a anedota descreve o homem. Em sua longa vida, Kant jamais quebrou a rotina do seu trabalho como professor da universidade local, e jamais afastou-se da sua pequena cidade, onde nasceu em 1724 e onde morreu, solteiro, aos 79 anos. Não há, pois, muito o que dizer sobre a vida do filósofo. Costuma-se fazer referência à sua origem modesta - seu pai era seleiro - e ao ambiente de tranqüila austeridade e disciplina do protestantismo pietista, no qual foi educado. Desde cedo aprendeu a desdenhar a dogmática religiosa e a cultivar a integridade pessoal como norma suprema de conduta. É bem possível que esses primeiros anos tenham-no influenciado na vida e na obra. Sua vida foi regrada e uniforme. Sua filosofia moral é uma celebração da dignidade individual.

A filosofia da moral e a dignidade do individuo.
O conhecimento racional, diz Kant, versa sobre objetos ou sobre suas próprias leis. Há dois gêneros de objetos: a natureza, que é o objeto da física, (mundo empírico) e a liberdade, que é o objeto da filosofia moral ou ética. (mundo ideal, no qual, segundo Kant, é tangível a partir da razão). O conhecimento das leis da própria razão, por sua vez, constitui a lógica; esse conhecimento é puramente formal, isto é, independente da experiência.

A física e a ética lidam com o mundo objetivo. Mas o conhecimento empírico nesses dois grandes ramos da filosofia tem seu fundamento em corpos de princípios puros, que a razão estabelece previamente a qualquer experiência; esses princípios, definidos a priori, são a condição de possibilidade de qualquer experiência racional (princípios, no quais, antecedem o mundo empírico, e so a partir deles é possível fundamentar o mundo empírico). À ciência desses princípios Kant denomina metafisica.

O princípio segundo o qual "todo evento tem uma causa", por exemplo, não pode ser provado (embora possa ser confirmado) pela experiência; mas, sem ele, a experiência da natureza, e portanto a ciência da física, seria impossível. Da mesma forma, a metafísica da moral estabelece que, embora não seja possível provar que o ser humano, enquanto ser racional, é livre, porém sem a idéia de liberdade, a experiência e o conhecimento do mundo moral seriam impossíveis.

A metafísica da moral, como filosofia moral pura, é dividida em duas partes. A primeira diz respeito à justiça; a segunda, à virtude. Ambas tratam das leis da liberdade, por oposição às leis da natureza; A legalidade, por exemplo, as leis coercitivas de uma sociedade, se distingue da moralidade pelo tipo de motivo pelo qual as normas são cumpridas. A mera conformidade da ação à norma caracteriza a legalidade; para que a ação seja moral, é preciso que a ação se realize pelo dever. As leis jurídicas são externas ao indivíduo e podem coagi-lo ao seu cumprimento (imposta pelo Estado, por isso externa, a moralidade é um lei interna ao individuo e universal). As leis morais, tornando obrigatórias certas ações, fazem ao mesmo  tempo da obrigação o móbil do seu cumprimento.

O binômio interioridade/exterioridade, próprio do jusnaturalismo e da ilustração implica, no plano político, a delimitação do poder público e a afirmação vigorosa do indivíduo face a ele. Trata-se de eliminar do pensamento jurídico a exigência de conformidade interna às leis do Estado, e de definir a esfera inviolável da consciência individual, por meio da moralidade. "A chave da filosofia moral e política de Kant", escreveu um comentador, "é a sua concepção da dignidade do indivíduo". A dignidade (valor intrínseco, sem equivalente ou preço) do homem está em que, como ser racional, não obedece senão às leis que ele próprio estabeleceu. O homem "é fim de si mesmo". Tal é o fundamento do seu direito inato à liberdade, e de todos os demais direitos políticos, bem como, em última análise, dos imperativos morais da república e da paz.

Toda a filosofia kantiana do direito, da política e da história repousa sobre essa concepção dos homens como seres morais: eles devem organizar-se segundo o direito, adotar a forma republicana de governo e estabelecer a paz internacional, porque tais são comandos a priori da razão, e não porque sejam úteis. Cabe, portanto, neste ponto, uma breve referência à doutrina do imperativo categórico, que é a pedra angular de todo o edifício da filosofia moral de Kant.

O imperativo categórico
A norma moral tem a forma de um imperativo categórico. O comando nela contido assinala a relação entre um dever ser que a razão define objetivamente; O comando moral é categórico porque as ações a ele conformes são objetivamente necessárias, independentemente da sua finalidade material ou substantiva particular.

Nisso reside sua diferença com respeito aos imperativos hipotéticos, que definem a necessidade de uma certa ação para a consecução de um objetivo desejado pelo indivíduo. A necessidade objetiva do comando categórico faz referência a que o dever moral vale para todos os homens enquanto seres racionais; o móbil, ou princípio subjetivo da ação, que pode variar segundo a situação ou o indivíduo, no qual não é possível determina o valor moral da ação.

A conduta moral, portanto, é vinculada a uma norma universal. O critério para a definição da boa conduta é formal: a moralidade da ação consiste precisamente na sua universalidade segundo a razão (que implica a desejabilidade da sua universalização). Assim se compreende a fórmula kantiana da Lei Universal, ou imperativo categórico: "Aja sempre em conformidade com o princípio subjetivo, tal que, para você, ele deva ao mesmo tempo transformar-se em lei universal" (desde que guiado pelo principio universal da razão). Os motivos materiais de nossas ações serão, pois, aceitos ou rejeitados segundo possamos ou não desejar que se constituam em leis internamente vinculantes (moral individual).

O imperativo "não mentirás", por exemplo, não deve ser obedecido em razão das consequências do seu cumprimento, pode-se, aliás, imaginar situações em que seja vantajoso mentir, mas não pode ser obedecido em razão das consequências justamente porque não poderíamos racionalmente desejar que a mentira, e não a verdade, se transformasse em norma geral de conduta. Ou seja, a fórmula geral de moralidade enunciada acima não decorre da observação empírica da natureza humana; ela é um enunciado a priori da razão. Dela se deduz uma  outra idéia: a de que, sendo universais, as normas morais que nos conduzem são elaboradas por nós mesmos enquanto seres racionais. Ou seja: a humanidade, e cada um de nós, é um fim em si mesmo. Retoma-se o argumento já esboçado antes sobre a dignidade do indivíduo. Se o agente racional é verdadeiramente um fim em si mesmo, ele deve ser o autor das leis que observa, e é isso que constitui seu supremo valor. 

Antes, porém, cabe um breve comentário sobre o contexto polêmico dessa doutrina. Kant opõe-se explicitamente ao utilitarismo como doutrina moral em que as leis reguladoras do comportamento são instrumentais com respeito aos valores materiais das ações humanas, ou com respeito ao objetivo universal de "felicidade". Se os valores são associados às inclinações subjetivas, sustenta Kant, ainda que sob a forma genérica de "felicidade", eles não são (por isso mesmo) definidos pela razão, e, se os homens deixam-se orientar por eles, não são livres. Só a conduta racionalmente fundada é compatível com a dignidade humana. Além disso, a moral utilitarista é incompatível com a justiça (sobre a qual se falará abaixo). A definição empírica, é portanto arbitrária, do que seja bom ou mau para os homens, leva a uma situação em que aqueles que têm o poder de impor tal definição oprimem os que dela discordam. Compreende-se também que, definido o que é "bom" e o que é "mau" por aqueles que têm o poder de fazê-lo, tudo o mais, e em particular a ordem jurídica, torna-se instrumento dos valores adotados. Ora, a constituição jurídica, como veremos, é ela mesma um imperativo moral, e portanto um valor em si.

A liberdade externa e a autonomia
A liberdade, em Kant, é a liberdade de agir segundo leis. As leis descrevem relações de causa e efeito. Portanto os homens são livres quando causados a agir. Como se resolve o aparente paradoxo? Nos seres racionais a causa das ações é o seu próprio arbítrio. Num primeiro sentido, portanto, a liberdade é a ausência de determinações externas do comportamento. Esse é o conceito negativo de liberdade. Daí decorre uma definição "mais rica e mais fértil". Se as ações são causadas, obedecem a leis (que são "as condições limitantes da liberdade de ação"). A liberdade da vontade não é determinada por leis da natureza; mas nem por isso escapam ao império de um certo tipo de leis, se assim não fosse, as ações humanas seriam não causadas, e o conceito de "liberdade da vontade" seria contraditório consigo mesmo. A liberdade tem leis; e se essas leis não são externamente impostas, só podem ser auto impostas. Esse é o conceito positivo de liberdade; ele designa a liberdade como autonomia, ou a propriedade dos seres racionais de legislarem para si próprios. A legislação racional é por sua própria natureza uma legislação universal. Ora, as leis universais são as leis morais. Liberdade e moralidade, política e universalidade são indissociáveis.

As observações feitas até aqui tratam, ainda que de modo sumário, dos fundamentos da filosofia moral de Kant, e introduzem o exame da sua doutrina do direito. Esse exame, por sua vez, é indispensável para a compreensão do conceito kantiano da transição do estado de natureza à sociedade civil.

A doutrina do direito
Normalmente, o direito é "o corpo  daquelas leis susceptíveis de tornar-se externas, isto é, externamente promulgadas". Toda e qualquer lei impõe deveres; mas o cumprimento desses deveres pode ou não ser coativamente exigido. No primeiro caso, trata-se de leis morais; (não são coativamente exigidas) no segundo, de normas jurídicas (são coativamente exigidas). Nesse argumento, a moral abrange o direito, conforme há leis que há a exigência de serem cumpridas ainda que não necessariamente sancionadas, o âmbito da moral é maior do que das leis positivas. (lembre-se que a moral de Kant é pautada na razão).

O fundamento de ambos os tipos de leis é a autonomia da vontade, e a referência a esse fundamento moral é constitutiva do direito. Mas isso não autoriza a dizer que toda lei positiva deva vincular-se internamente aos sujeitos (ou seja, nem toda lei positiva deve ser pautada em uma lei moral). Uma coisa não implica a outra. Idealmente, pode-se supor uma situação em que as duas esferas se superponham, e em que, portanto, a conformidade à lei positiva manifeste externamente a conformidade interna ao dever que ela explicita. Portanto, Kant relata que o controle imperfeito da razão sobre as paixões impede que isso ocorra. Tal é a irremovível condição humana. Quanto aos deveres morais, os homens são responsáveis perante si mesmos; na esfera jurídica, são responsáveis perante os demais. A liberdade moral se alcança pela eliminação dos desejos e inclinações que impedem a adequação da conduta aos comandos da razão; a liberdade jurídica consiste em não ser impedido externamente de exercer seu próprio arbítrio (vontade).

Como não podia deixar de ser, Kant não está interessado no direito positivo, mas na ideia, ou no conceito universal a priori do direito. O objeto da reflexão são as relações interpessoais, ou a sociabilidade. A questão é esta: qual é o principio da legislação que ordena as relações interpessoais segundo a justiça? Se a justiça é o "conjunto das condições sob as quais o arbítrio de um pode ser unido ao arbítrio de outro segundo uma lei universal de liberdade", o princípio, ou a "lei universal do direito", é o seguinte: "Age externamente de tal maneira que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a liberdade de cada um segundo uma lei universal". A relação jurídica diz respeito, antes de mais nada, à relação externa com o outro. Essa relação envolve dois sujeitos capazes e responsáveis, cujas pretensões sobre um objeto devem ser juridicamente coordenadas.

O móbil da ação de cada um é a pretensão externamente manifestada; no ato jurídico, não interessa saber qual é a pretensão interna de cada um. Enfim, declaradas as pretensões, a justiça da transação não se avalia pelos benefícios que cada um tira dela. Não tem sentido, por exemplo, dizer que tal operação de compra e venda "foi injusta porque o preço foi muito alto". O que importa é a forma do ato jurídico: a conformidade a uma norma que se aplica a todos, e cujo princípio (ou juridicidade) está em garantir aos dois contratantes o livre uso dos seus arbítrios.

Convém atentar para as implicações políticas gerais da doutrina kantiana do direito. Em outras concepções, o direito subordina-se a certos valores materiais: a ordem pública (como em Hobbes, ou nas várias modalidades do pensamento autoritário), ou a igualdade (como, por exemplo, nas concepções que erigem a "justiça social", as reformas de estrutura ou o bem-estar social como valores supremos da ação legislativa do Estado). Segundo Kant, a sociedade se organiza conforme a justiça, quando, nela, cada um tem a liberdade de fazer o que quiser, contanto que não interfira na liberdade dos demais.  Kant é possivelmente o mais sólido e radical teórico do liberalismo.

As normas jurídicas são universais; elas obrigam a todos, independentemente de condições de nascimento, riqueza etc. Quem viola a liberdade de outrem ofende a todos os demais, e por todos será coagido a conformar-se à lei e compensar os danos causados. A coerção é parte integrante do direito; a liberdade, paradoxalmente, requer a coerção. Duas são as condições para o uso justo da coerção. A primeira é a seguinte: "Se um certo exercício da liberdade é um obstáculo à liberdade [de outrem] segundo as leis universais [isto é, se é injusto], então o uso da coerção para opor-se a ele é justo". A segunda decorre da universalidade das leis violadas: a coerção só é justa quando exercida pela vontade geral do povo unido numa sociedade civil.

Direito privado e direito público
Como jusnaturalista, Kant distingue entre a lei natural e a lei positiva (segundo a fonte; individuo ou estado) e entre direitos inatos e adquiridos (segundo sua exigibilidade dependa ou não do seu acolhimento na lei positiva). As leis naturais se deduzem de princípios a priori; elas não requerem promulgação pública e constituem o direito privado. As segundas expressam a vontade do legislador,  são promulgadas e constituem o direito público. Ou seja, o direito privado para Kant, é aquele direito que o individuo concebe como certo segundo seus próprios valores. E o Direito publico é aquele direito vigente em uma determinada sociedade tanto o direito civil, como constitucional, penal e etc.

Na teoria de Kant NÃO se pode deduzir da distinção entre as fontes do direito natural e do direito positivo que esses dois ramos constituem corpos jurídicos dissociados um do outro, e menos ainda que Kant sustenta, no direito público, uma tese do positivismo jurídico. A vontade do legislador, em Kant, não é o arbítrio do poder estatal, mas a vontade geral do povo unido na sociedade civil. Embora tenham fontes diferentes, portanto, o direito privado e o direito público têm o mesmo fundamento: a autonomia da vontade. Por isso mesmo, as várias partes da filosofia moral de Kant possuem uma "forma arquitetônica"; e (as constituem um "sistema". O direito público, ou positivo, não é idêntico ao direito natural; mas é necessário pressupor a existência de um nexo sistemático entre eles, através do qual o princípio comum da justiça como liberdade opera, em grau maior ou menor, na esfera do direito positivo e constitui, dessa forma, a sua juridicidade.

A distinção kantiana entre direito privado e público ressalta a existência, no estado de natureza, de um certo tipo de sociabilidade natural derivada da racionalidade humana: "O estado de natureza não é oposto e contrastado ao estado de sociedade, mas à sociedade civil, porque no estado de natureza pode haver uma sociedade, mas não uma sociedade civil". (ou seja, antes de haver o Estado organizado como tal, havia uma sociedade no estado de natureza, advinda da sociabilidade natural dos homens);  A armação sistemática do argumento subseqüente pressupõe essa distinção.

Do contrato originário.
O ponto de partida para intender sobre o contrato originário é a distinção entre a posse física e a posse inteligível. A posse jurídica corresponde a esta última (posse inteligível): ter direito a um objeto significa que o uso do  que é meu por outra pessoa, mesmo quando eu não o esteja utilizando, constitui uma ofensa. Por outro lado a posse empírica, por sua vez, é fortuita e baseada na vontade unilateral do possuidor.

Como se observa, a posse jurídica "faz abstração de todas as condições da posse empírica no espaço e no tempo". Ela é puramente racional. Ora, a possibilidade de proibir legitimamente o uso do meu objeto por parte de todos os demais, mesmo quando não o utilizo, pressupõe, necessariamente, o acordo de todos os demais. É necessário, portanto, pensar que, originalmente, todos têm a posse coletiva de todos os bens, e que a base legal da posse individual é o ato da vontade coletiva que a autoriza.

Tudo isso nos ensina que no estado de natureza os homens não se relacionam apenas segundo a força de cada um. Se assim fosse, não haveria posse jurídica. Contudo, os homens são dotados de razão e de paixões. O estado de natureza é instável: "Não há nele um juiz com competência para decidir com força de lei as controvérsias sobre direitos". Por essa razão, a posse de jure no estado de natureza é sempre provisória. Para que seja definitiva, ou peremptória, deve ser garantida por uma autoridade superior. Ainda que na obra de Kant não explicito um contrato social, podemos supor, que essas ideias faz referencias ao mesmo.  

O direito público é o direito positivo, emanado do legislador para a regulação dos negócios privados (justiça comutativa) e das relações entre a autoridade pública e os cidadãos (justiça distributiva). Os indivíduos que se relacionam em conformidade com leis publicamente promulgadas constituem uma sociedade civil (status civilis); vista como um todo em relação aos membros individuais, a sociedade civil se denomina Estado. Os termos "sociedade civil" e "Estado", portanto, referem-se ao mesmo objeto, considerado de pontos de vista distintos.

A transição à sociedade civil é um dever universal e objetivo, porque decorre de uma idéia a priori da razão. É certo que os homens no estado de natureza tendem a hostilizar-se; mas a passagem de um estado a outro não obedece a motivos de utilidade. Trata-se de um imperativo moral: o estado civil é a realização da idéia de liberdade tanto no sentido negativo como positivo.

Pressupondo-se necessariamente a juridicidade provisória do estado natural, o ato pelo qual se "constitui" o Estado é o contrato originário, concebido como idéia a priori da razão: sem essa idéia, não se poderia pensar um legislador encarregado de zelar pelo bem comum, nem cidadãos que se submetem voluntariamente às leis vigentes. Em outras palavras, "somente a idéia daquele ato permite-nos conceber a legitimidade do Estado". É irrelevante, portanto, saber se tal contrato foi ou não realizado de fato na história. Aliás, para sermos precisos, contrato originário não "constitui" a sociedade; ele a explica tal como ela deve ser. A idéia do contrato remete não à origem mas ao padrão racional da sociedade, isto é, remete a algo fora da história, e não no passado. Kant é claro sobre esse ponto na seguinte passagem: "[O contrato originário] não é o princípio que estabelece o Estado; antes, é o princípio do governo político e contém o ideal da legislação, da administração e da justiça pública legal".

A negação do direito de resistência ou de revolução
Esse procedimento metodológico tem desdobramentos teóricos e políticos muito importantes. Kant afirma que a base da legitimidade é o consenso; mas o consenso é entendido como suposto teórico necessário. Com isso, a latitude de interpretação do fenômeno numa situação concreta qualquer é infinita. Na exposição do argumento, não se faz sequer a distinção entre consenso explícito e tácito, como em Locke; se há Estado, há consenso. Na mesma ordem de considerações, se o contrato é uma idéia, todos os Estados existentes nela se fundamentam, por imperfeitos que sejam; dela procuram aproximar-se e dela participam. Em conseqüência, os cidadãos não podem opor-se aos seus governantes em qualquer hipótese. A teoria kantiana da obrigação política, vinculada à sua concepção apriorística do contrato, estabelece o dever de obediência às leis vigentes, ainda que elas sejam injustas. Nisso, ele difere de Hobbes, para quem as leis do soberano são sempre justas, e por isso devem ser respeitadas, e de Locke, que admite o direito de resistência no caso de leis injustas.

Kant retorna a essa questão em várias passagens, não sem uma certa vacilação e flutuação do argumento. Aqui ele declara: "A mais leve tentativa [de rebelar-se contra o chefe do Estado] é alta traição, e a um traidor dessa espécie  não pode ser aplicada pena menor que a morte". Ali, ele admite que o destronamento do monarca pode ser escusável, embora não permissível: o argumento básico da recusa do direito de revolução, contudo, persiste, e apresenta-se em três versões.

A primeira é a seguinte: "Para que o povo possa julgar a suprema autoridade política que tem a força da lei, deve ser considerado como já unificado sob a vontade legislativa geral; portanto" - em virtude do pacto originário sem o qual não se poderia conceber o povo dessa maneira - "seu julgamento não poderia diferir do julgamento do presente chefe de Estado". Numa interpretação menos rígida, poderíamos dizer que, se há Estado, ele contém um princípio de ordem segundo leis, e, por pior que seja, deve ser resguardado, porque representa um progresso em direção ao Estado ideal.

A segunda versão está na "Paz perpétua". Se os direitos do povo são violados, não há injustiça em depor o soberano. Mas se o povo fracassa é punido, também não pode reclamar de injustiça. A questão, em termos dos fundamentos da justiça, decide-se como se segue. Nenhuma Constituição pode outorgar ao povo o direito à revolta, sob pena de contradizer-se a si própria. Portanto, a revolta é ilegal. Isso se demonstra como se segue: se a revolta ocorrer, ela tem de ser secretamente preparada. O chefe do Estado, ao contrário, afirma publicamente seu poder supremo, incontrastável; tal é a sua obrigação, porque ele deve comandar o povo contra agressões externas. Ora, o princípio da publicidade é constitutivo do direito público, e, por conseguinte, na situação de revolta, confrontam-se uma vontade particular e uma vontade geral. O sucesso eventual de uma revolta apenas demonstra que a necessária suposição de que o soberano detinha, efetivamente, o poder supremo era falsa, e a questão da justiça não se coloca.

A terceira versão do argumento encontra-se em "Sobre o ditado popular..." [A idéia do contrato originário] obriga todo legislador a considerar suas leis como podendo ter sido emanadas da vontade coletiva de todo o povo, e a presumir que todo sujeito, enquanto ele deseja ser um cidadão, contribuiu por seu voto à formação da vontade legislativa. Tal é a pedra de toque da legitimidade de toda lei pública. Se, com efeito, essa lei é tal que seja impossivel que todo o povo possa dar a ela seu assentimento (se, por exemplo, ela decreta que uma classe determinada de sujeitos deve ter hereditariamente o privilégio da nobreza), essa lei não é justa. Mas se for simplesmente possível que o povo a aprove, então temos o dever de considerá-la justa.

A possibilidade ou impossibilidade de que uma lei seja justa se avalia por referência aos princípios racionais do direito, e não à efetiva manifestação popular sobre a questão. O exemplo que nos dá Kant no mesmo ensaio ilustra o ponto. No caso de decretação de um imposto de guerra proporcional a todos, o povo não pode opor-se sob argumento de que a guerra não lhe parece indispensável, porque "näo lhe compete emitir juízo sobre a questão". Mas se o imposto recair sobre alguns e não sobre outros, a lei é injusta e pode ser contestada.

O Estado liberal
Kant, como Rousseau, recusa o dilema hobbesiano: “liberdade  sem  paz  ou  paz mediante submissão ao Estado”. Ambos compatibilizam teoricamente os dois termos (liberdade e Estado) mediante o conceito de autonomia: as leis do soberano são as leis que nos demos a nós próprios. Mas há entre os dois autores uma diferença fundamental. Rousseau formula uma certa versão de um Estado democrático (visto que o poder vem do povo em geral); Kant é um teórico do liberalismo (o poder, parte, da liberdade individual). Kant concebe o Estado como um instrumento (necessário) da liberdade de sujeitos individuais. Em Kant, a autonomia deduz-se da liberdade negativa, e a preserva e garante. A liberdade como não impedimento no estado de natureza é precária, e requer o exercício da autonomia. A reconciliação dos homens consigo mesmos enquanto seres livres necessita a promulgação pública das leis universais, que manifesta a disposição de todos e de cada um de viver em liberdade.

Essa construção teórica tem notáveis implicações políticas, já esboçadas acima. No sistema kantiano, nega-se às autoridades públicas o dever e o direito de promover a felicidade, o bem-estar ou, de modo geral, os objetivos materiais da vida individual ou social. A razão disso é a seguinte: a legislação deve assentar sobre princípios universais e estáveis, ao passo que as preferências subjetivas são variáveis de indivíduo a indivíduo e cambiantes no tempo. Além disso, a ninguém é dado o direito de prescrever a outrem a receita da sua felicidade. O que deve, então, fazer o Estado? Ao Estado incumbe promover o bem público; o bem público é a manutenção da juridicidade das relações interpessoais. Nas palavras de Kant: A máxima salus publica, suprema civitatis lex est permanece em sua validez imutável e em sua autoridade; mas o bem público, que deve ser atendido acima de tudo, é precisamente a constituição legal que garante a cada um sua liberdade através da lei. Com isso, continua lícito a cada um buscar sua felicidade como lhe aprouver, sempre que não viole a liberdade geral em conformidade com a lei e, portanto, o direito dos outros consorciados. Essa passagem expande e esclarece a fórmula adotada por Kant nos Elementos:  "As leis do direito público referem-se apenas à forma jurídica da convivência entre os homens".

Somente em um caso o Estado é autorizado a adotar políticas de conteúdo subjetivo. A autoridade pública deve prover a subsistência dos que não podem viver por seus próprios meios (porque a sua própria existência depende de que eles façam parte da sociedade, dela recebendo proteção e cuidado). Se, fora disso, "o Estado estabeleceu leis que visam diretamente a felicidade [o bem-estar dos cidadãos, da população etc.], isso não se faz a título de estabelecimento de uma constituição civil, mas como meio para garantir o Estado jurídico para que o povo exista como república". Compreende-se que, não sendo um dever constitutivo do Estado, essas medidas dependem exclusivamente do julgamento pessoal (prudência) do governante.

A dialética kantiana da história
Importa reter aqui o significado geral do pensamento kantiano sobre o progresso humano: a política, como atividade de elaboração e aperfeiçoamento constitucional, é um processo de racionalização das relações entre os homens e entre os Estados. Mas o progresso não é um processo rápido, nem indolor. Ele é lento, enganoso e sobretudo contraditório. A humanidade avança por efeito da contraditoriedade das opiniões, dos interesses particulares e dos interesses nacionais.

As opiniões devem entrechocar-se livremente. Kant defende esse ponto de vista em "O que é a ilustração?". Mas o que significa exatamente isso? Desde logo, é preciso não nos enganarmos com o que se poderia denominar "a ilusão revolucionária". O povo rebelado, sob a liderança de políticos ilustrados, pode derrubar um tirano, mas isso não altera seu nível cultural. Em conseqüência, "novos preconceitos substituirão os antigos para atrelar as grandes massas ignorantes". O verdadeiro caminho é a liberdade, e, concretamente, a liberdade de opinião e de imprensa. O soberano não é divino, e pode errar; é necessário, portanto, conceder aos cidadãos, com o beneplácito do próprio soberano, o direito de emitir publicamente suas opiniões e a liberdade de escrever. O alargamento do debate público é condição do progresso.

Outra mola do progresso é o conflito de interesses individuais, bem como de interesses nacionais. Aqui, o progresso aparece como mera resultante não intencional da interação humana; ele manifesta uma "finalidade secreta da natureza". Sem o "natural antagonismo entre os homens", escreve Kant, "todas as excelentes capacidades naturais da humanidade permaneceriam para sempre adormecidas, agradeçamos, portanto, à natureza, pela incompatibilidade, pela cruel vaidade competitiva, pelo insaciável desejo de posse e dominação (próprios dos homens)". Da mesma forma, o progresso em direção à paz internacional contém em si o momento necessário da guerra: são as guerras que, "depois de devastações, revoluções e até a completa exaustão, conduzem [os homens] àquilo que a razão poderia ter ensinado a eles desde o início".

O entendimento kantiano do "antagonismo natural" é bastante peculiar no campo do jusnaturalismo. Em Hobbes, Rousseau e Locke, o antagonismo tem signo negativo, seja porque é a antítese da sociabilidade, seja porque não traz nada de bom. O antagonismo kantiano não é incompatível com a sociabilidade natural nem com a sociedade civil - nisso ele se diferencia dos dois primeiros autores citados. (em Locker, não há antagonismo, apenas pequenas contradições entre interesse na sociedade, na qual é sanada com o advento do Estado) Ademais - e nisso ele se diferencia dos três -, ele atribui ao antagonismo humano uma função positiva:  ou seja, a competição e a guerra não se relacionam à justiça e à paz como termos imediatamente antitéticos, mas como mediações do progresso. Não seria excessivo descobrir no pensamento kantiano sobre a história uma espécie de "dialética da ilustração", em que a razão progride não pelo confronto da razão consigo própria, como em Hegel, mas pela negatividade persistente das paixões humanas. Note-se, enfim, que a dedução kantiana de padrões ideais - que na política em particular funcionam como idéias reguladoras que se impõem praticamente aos governantes - não parece conduzir a afirmação de que eles se realizarão fatal e concretamente na história. (Parece-me que há uma certa separação ideológica em Kant em relação a politica e a historia, aqui me parece que ela já tinha lido David Hume e mudado de ideia, rsrs*)

A filosofia de Kant sobre os móveis do progresso é um elogio da divergência e da competição. O homem kantiano se assemelha ao homem que, em Adam Smith, por exemplo, visa maximizar seu lucro no mercado e, ao fazê-lo, promove a prosperidade geral. (ainda que para certos teóricos tal fato é negativo, a soberba e a ganancia). Entretanto, a natureza, para um (Kant), o mercado, para outro (Adam Smith), desempenham ambos a função de "mão invisível do progresso". Desse ponto de vista, Kant é o mais "moderno" dos pensadores liberais clássicos, ele näo apenas declara a soberania do indivíduo, mas também legitima filosoficamente o indivíduo empreendedor.

Não se trata, é claro, para o autor, de celebrar o interesse particular enquanto tal, mas de reconciliar os particularismos em choque com a idéia de uma sociedade justa. No plano da teoria do direito, a sociedade justa (a sociedade regulada por leis emanadas da vontade geral) é pressuposta, e as ações individuais manifestam apenas a subjetividade de cada um no exercício de sua liberdade negativa. Já no plano da teoria da história, a sociedade ideal emerge progressivamente das ações individuais enquanto exercício da liberdade natural, pré-contratual, a qual, se não instaura imediatamente um estado de perfeita injustiça, envolve, näo obstante, a expropriação, o domínio e a guerra (relações de poder).

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